sábado, março 26, 2005

A arte imita a vida imita a arte.

Depois de três gins tónicos, eu com a cabeça a andar à roda, saímos do bar onde estivemos e corremos, rua abaixo, chuva cada vez mais forte, em direcção ao parque de estacionamento do Camões. Rio, quase descontroladamente, cada vez mais alto, com um gosto que pensava ter-me fugido. Chove mais. Rio mais. Estamos encharcados, mas temos chapéu-de-chuva.

(Chegamos.)

Descemos a escada e encontramos um homem com um chapéu de palha e uma antena de televisão que nos diz "Quero uma moeda!" Dizemos que não temos moedas e o encoberto replica "Quero uma moeda, caralho!", enquanto nos aponta, de forma ameaçadora, a antena maior do que ele. Só então nos apercebemos de que, para todos os efeitos, estamos a ser assaltados. Corremos escada acima, aos berros, eu ainda intoxicado do álcool. Vamos em direcção à outra entrada do parque. Atrás de nós, um louco de antena na mão que grita "Venham cá, cabrões! Filhos da puta!" Corremos mais depressa. A chuva ainda. Mais e mais forte.

Entramos no parque. Descemos mais escadas a correr. Encontramos gente. Estamos a salvo.

Passado tudo - e já dentro do carro -, são engraçadas as primeiras impressões que tivemos de tudo aquilo. A princípio, a R. pensou que fosse um maluco. Eu pensei que fosse performance art.

domingo, março 20, 2005

À procura de um texto autobiográfico (6).

CHARLOTTE: John thinks I'm so snotty.

(Bob chuckles)

CHARLOTTE: Hm.

BOB: You're not hopeless.


[ Sofia Coppola: Lost in Translation. ]

À procura de um texto autobiográfico (5).

JOHN: Why do you have to point out how stupid everybody is all the time?

CHARLOTTE: I thought it was funny. Forget it.


[ Sofia Coppola: Lost in Translation. ]

sábado, março 19, 2005

Recado para mim mesmo (2).

'Não, tu não podes querer nada daqui. Não, tu não podes levar nada daqui.'

('Não, tu não vais levar nada daqui.')

Recado para mim mesmo (1).

onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba onde o meu corpo acaba

onde o teu nunca começará

Partir as partes em partes.

Timer

The smell of ammonia in the entrance hall.
The racing bike. The junk mail.
The timer switch whose single naked bulb
allowed us as far as the first floor.
The backs of your legs
as you went ahead of me up the stairs.

The landing where we paused for breath
and impatient key searching.
The locks which would never open quickly enough
to let us in.
The green of the paintwork we slid down
as if we had nowhere else to go.


[ Hugo Williams: Billy's Rain. ]

Dos universos possíveis.


Memória silenciosa da rua onde vives.

Não é o que consegues ver pela janela que importa - é o que consegues ver mas não está lá. Não paredes, tijolos, argamassa, tinta e vidro. Não a porta de entrada verde. Não o amarelo pálido que cobre as paredes. Não as cortinas, por vezes corridas, outras vezes não. Não o cão que ladra. Não os pássaros que ouves, deitado na cama, olhos abertos, às cinco da manhã, quando ainda não dormes. Não a calçada a ser lavada pela chuva que caiu de repente. Não as quedas silenciosas dentro das casas da rua onde vives.

(Sim.)

Colour-coded.


domingo, março 06, 2005

Profissão: anagnórise.

Estou a sair de casa à pressa e, pouco antes de ligar o alarme, apercebo-me: sou uma anagnórise - é impressionante o sentido que isto me faz e quanto isto explica. Atraso-me um pouco e escrevo "Não esquecer: tu és uma anagnórise" num post-it que arranco do bloco. Colo-o, ironicamente, no The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, de J. A. Cuddon. Quando regresso a casa, às duas ou três da manhã - não me lembro ao certo da hora - procuro (e encontro) anagnorisis; e ali estou eu, descrito em seis linhas:

anagnorisis (Gk 'recognition') A term used by Aristotle in Poetics to describe the moment of recognition (of truth) when ignorance gives way to knowledge. According to Aristotle, the ideal moment of anagnorisis coincides with peripeteia (q.v.), or reversal of fortune. The classic example is in Oedipus Rex when Oedipus discovers he has himself killed Laius. See TRAGEDY.

Dizia eu que era uma anagnórise. Confirmo: sou uma anagnórise. Não tanto para mim (embora também às vezes) mas para as pessoas com quem estou e estive. Fui e sou uma anagnórise - o derradeiro momento de reconhecimento; a luz que se faz quando já há muito se deixou de esperar; a percepção (dura ou não, não me cabe a mim dizê-lo) de que é imperativo e impreterível seguir em frente, de que uma anagnórise vale um momento - e um momento só - e de que esse momento passa, sendo preciso andar para outros que fiquem como uma mancha ou coisa melhor.

O reconhecimento. A peripécia. E o fim em mim mesmo contido. Eu. A anagnórise encarnada e reencarnada. Vezes e vezes sucessivas.

("Partida. Largada. Fugida.")


quarta-feira, março 02, 2005

À procura de um texto autobiográfico (4).

Faking the books

We've been done before
and now we try to forge ourselves
We've been done before
and now we try to forge ourselves
I'll be true again
But until then I fake the books
'Cause everybody knows
This ain't heaven
Until everybody knows
We've been wrong before
There is a lot that we survived
We've been wrong before
There is a lot that we survived
I'll be true again
But until then I fake the books
'Cause everybody knows
This ain't heaven
Until everybody knows


[ Lali Puna: Faking The Books. ]

Descobertas.

Há descobertas que fazemos tardiamente mas que acabam por se constituir como referências no nosso panorama musical (presente e futuro). Os Lali Puna são uma destas descobertas - estou a ouvir o álbum Faking The Books, que me foi cedido por um conhecido meu, e apercebo-me de que a minha noção de electronica acabou de sofrer uma revolução profunda. Não a consigo explicar ao certo, mas acho que passa por uma questão de horizontes de expectativa: quando comprar algum álbum na categoria de electronica sei, demasiado bem talvez, que vou usar os trabalhos dos Lali Puna como yardstick; e a razão para isso é simples - eles são bons. Muito bons. Ponto. A voz acolhedora, enrouquecida, de Valerie Trebeljahr e uma parte instrumental perfeitamente construída, onde nada é deixado ao acaso, são mais do que justificação para ouvir este grupo fenomenal. Para mais informações, seguir o link abaixo.