quinta-feira, setembro 29, 2005

Comentário desnecessário (29).

Humano em part-time.

Passeias pelos corredores e, de cabeça, recitas o que vieste comprar

(arroz, alface frisada, gelado, lixívia)

numa tentativa, frustrada desde o início, de te distraíres do vazio que te invade sempre que fazes compras sozinho. Olhas em frente. Sentes que os teus olhos se fecham involuntariamente - se semicerram, à medida que passas por pessoas que, como tu, fazem a maratona das prateleiras

(queijo ralado, sumo de maçã, batatas fritas)

no menor tempo possível; porque é imperativo acabar depressa; sair daqui. Sabes onde tudo está porque sempre funcionaste assim - porque mapeias os sítios; porque os domas antes de os tornares

(atum, massa, detergente para a loiça, água, amaciador)

um hábito teu. É-te automático fazer isto. Mas custa-te. Sentes-te perfeitamente sozinho aqui; desarmado; desprotegido; sem capa ou couraça que te valham. Aqui tu és tu: a rebentar pelas costuras, cheio de qualquer coisa que mal identificas ou sequer controlas, uma corrida suada para chegar à caixa e sair, uma vontade terrível de chorar, de te ancorares ao chão.

Tu: humano em part-time.

segunda-feira, setembro 26, 2005

Comentário desnecessário (28).

Ficção (5).

Viras à esquerda, mas a rua não é a mesma; não é esta a que procuras. Voltas atrás. Passas pelas centenas de turistas de pele e cabelo lixiviados, em direcção a uma casa que não tens a certeza de conseguir encontrar. Procuras a bifurcação característica que, em noites idas, te costumava guiar. Chegar à casa era chegar a ele - ao cheiro e ao toque dele; ao conforto que ele era.

(Chegar à casa era chegar.)

Comentário desnecessário (27).

À procura de um texto autobiográfico (17).

How long, he asked
have you been in this territory.

Years I said. Years.


[ Edward Dorn: Gunslinger, Book I. ]

Ao descer a Rua da Misericórdia.

Uma solidão óssea. Cada vez mais. Uma coisa estranha e entranhada

(mais mais)

no corpo que impeles

(tantas vezes)

alheio a ti.

From Barcelona, with love.

quinta-feira, setembro 22, 2005

Ficção (4).

Depois do jejum, o corpo dela não é o mesmo. As articulações já de si frágeis sobressaem na pele - secas, gastas, ásperas. Levanta-se. Olha através da janela. Consegue ver os muros do Hospital Miguel Bombarda. Na rua, o som dos carros que passam e do tocar das campainhas

(- Correio!)

em prédios contíguos ao seu. Não sabe que dia é. Não importa.

Comentário desnecessário (26).

O seu a seu dono.

Um agradecimento muito especial ao Pedro pela paciência (leia-se "pachorra") que teve na filtragem de erros meus (em nada eventuais) no HTML. É ele o responsável pelo correcto funcionamento dos links - agora devidamente seccionados - aqui do lado.

(Obrigado, Pedro.)

terça-feira, setembro 20, 2005

Futuros próximos.

Ficção (3).

No táxi, esqueces-te do sítio para onde vais. Quando chegas e o condutor to sublinha,

("Ora aqui estamos...")

pagas e sais de rompante. Estás na rua. Perdida algures na extensão da Avenida de Roma. Tentas encontrar-te mas apercebes-te de que não importa, realmente, onde estás. Entras num café, pedes uma italiana (um hábito que te ficou do tempo de faculdade); bebe-la e sais. Não estás perdida em Lisboa. Sabes exactamente onde estás. Sabes perfeitamente para onde tens de ir. Mas "ter de" não se equipara a "querer". Desces lentamente, pelo passeio. Não ligas às montras nem às letras garrafais, em cores berrantes,

(SALDOS 50%)

que te anunciam qualquer coisa que não te interessa. Desces. Passas em frente à Barata (outro hábito de faculdade), mas resolves não entrar. A aquisição hoje é outra. Tiras do anelar da tua mão esquerda a aliança dourada insuportável que te rememora, ad nauseam, o facto de estares casada há quinze anos com um homem que detestas pelo menos há catorze. E deita-la no lixo porque sabes que nada nela é reciclável; que nada dela se salvará.

(Tara perdida.)

Comentário desnecessário (25).





Ficção (2).

Aprendi com o tempo a conhecer todos os teus gestos - a conhecer-te até existires em mim apenas tu.

Ficção (1).

Acordaste a meio da noite e disseste-lhe:

- Tens mesmo a certeza de que é isto que queres? A sério, não é tarde para desistires... talvez até fosse pelo melhor. Eu não levo a mal.

Ele sorriu-te e, com a voz ainda presa do sono, respondeu-te:

- Tu às vezes... vá... dorme...

Reality is stranger than fiction.

O grande problema da ficção reside em tomarmo-la pela realidade.

A grande virtude da ficção reside em tomarmo-la pela realidade.

Comentário desnecessário (24).

Do presente para o passado para o presente.

Abre o guarda-chuva e sai do carro. Anda os escassos metros que te separam da porta. Fecha o guarda-chuva ainda fora e entra. Senta-te. Pede um café e uma torrada. Olha em volta. Ninguém.

(Domingo típico.)

Tira o jornal da mala que trazes sempre contigo e deixa-o pousar na mesa. Finge ler. O café e a torrada chegam. Através das grandes janelas do sítio onde estás consegues ver o pouco que resta da praia, coberta agora pelas ondas. Entra alguém. Não reparas. Bebes o café como um reflexo. A torrada emurchece.

(Nova bátega de água no pontão. Cada vez menos areia à vista.)

Lembras-te de, quando eras mais pequeno, ires buscar a B. à estação do Estoril; a B. que te chegava sempre sorridente, que mais não fosse por te ver; a B. que parcialmente se responsabilizara pela difícil tarefa de te contar histórias em miúdo - histórias diferentes de cada vez que te eram contadas, não muito distantes das que ouvias, repetidas vezes, nas cassetes que estragaram gravadores atrás de gravadores (permanecendo elas milagrosamente ilesas). Lembras-te de, ainda na estação, comeres o rebordo (os "dentes") dos queques que um café, agora inexistente, vendia - e do gozo que isso te dava; do sabor do açúcar, da textura da massa do bolo.

Chamas o empregado:

- Desculpe, já agora, era um queque, por favor...

(E repetes os ritos antigos.)

Comentário desnecessário (23).

segunda-feira, setembro 19, 2005

À procura de um texto autobiográfico (16).

The Poem That Took the Place of a Mountain

There it was, word for word,
The poem that took the place of a mountain.

He breathed in its oxygen,
Even when the book lay turned in the dust of his table.

It reminded him how he had needed
A place to go to in his own direction,

How he had recomposed the pines,
Shifted the rocks and picked his way among clouds,

For the outlook that would be right,
Where he would be complete in an unexplained completion:

The exact rock where his inexactnesses
Would discover, at last, the view toward which they had edged,

Where he could lie and, gazing down at the sea,
Recognize his unique and solitary home.


[ Wallace Stevens: The Collected Poems of Wallace Stevens. ]

Listening sessions (3).

Acabados de chegar e a ouvir, com urgência e em muito provável repeat, nos próximos dias:

Cat Power: You Are Free.
Iron and Wine: Our Endless Numbered Days.
Calexico | Iron and Wine: In the Reins.
Sufjan Stevens: Seven Swans e Come On Feel the Illinoise.
Sigur Rós: Takk.

sexta-feira, setembro 16, 2005

O problema do pretérito perfeito.

Dizes adeus. Começas a dizer adeus só agora quando devias ter começado muito tempo antes. Começas a dizer adeus quando ouves a voz dele, do outro lado do telemóvel. Dele: do homem que, durante os fins-de-semana, te aturava nas tuas tentativas de avançar na aprendizagem de piano; te ajudava a desbravar partituras e partituras; do homem com quem, pela primeira vez, sentiste fazer verdadeiros progressos ao teclado.

(Mas.)

Ele vai desaparecer de Lisboa. Da tua vida. E tu, por não saberes o que fazer, porque esta era uma colisão para a qual devias estar preparado (mas não estás), sentas-te no sofá da sala - ainda estremunhado do sono - e escreves este texto, na esperança de que o dia em que ele anunciou a sua partida não passe em branco; não seja só mais um.

(Quintas perfeitas e terceiras menores. Acordes diminutos. Fá sustenido maior.)

Não sabes o que fazer. Olhas à volta mas nada te ajuda a ultrapassar isto. E como não consegues dizer adeus dizes-lhe, com a cara a franzir-se, com os olhos já alagados, a frase que lhe dizias todas as semanas, finda a aula - uma coisa longínqua, polar, que te parecia tão longe de um adeus mas que agora lhe tomou o lugar:

- Até para a semana, E.

Dizer adeus. Diz adeus. Digo adeus.

("Até para a semana, E.")

terça-feira, setembro 13, 2005

Comentário desnecessário (22).

Verbo: deixar.

Entra em casa. Fecha a porta atrás de ti. Acende a luz que te permite chegar até quase todas as partes da casa em que vives. Desliga a luz, agora capaz de encontrar o teu caminho no escuro. Senta-te no sofá. Suspira fundo. Liga a televisão em mute e assiste, impávido, ao espectáculo do mundo. Descalça os sapatos. Primeiro o esquerdo. Depois o direito. Tira a gravata.

(Despir a pele da pele. A pele. Dez pontos.)

Levanta-te do sofá. Vai, descalço, até à cozinha. Abre o frigorífico. Tira o tupperware marcado "terça-feira"

(feijoada)

e deixa-o em cima da bancada. Deixa a cozinha. Acende a luz da casa de banho, deixa cair o casaco que vestes no chão. Lava a cara com água fria e olha-te

(sistema cardiovascular arteríolas capilares sangue)

ao espelho. Contempla, no cabelo farto, os vagos brancos que to pontilham. Sai novamente. Vai até ao quarto. Senta-te em cima da cama e diz, para ti, que vais apenas descansar os olhos. E adormece.

(Quando acordares, será outro o dia.)

À procura de um texto autobiográfico (15).

how do i get thru the day? the night?
guts, fella. that's how


[ Alta (Gerrey): "I Don't Have No Bunny Tail on My Behind". The Penguin Book of American Verse. ]

Finn gone light (2).

Jantar.

Finn gone light (1).

Almoço.

Write-protected.

Escrever é especialmente impossível quando nos obrigamos a fazê-lo.

Comentário desnecessário (21).

Código conhecido.

Uma tese é um filho que fala uma língua que só nós conhecemos.

À procura de um texto autobiográfico (14).

This is my face and its moods
my moods, a riffled whiteness
shaken by the flow
that's constant in its swiftness
as a pool -


[ William Carlos Williams: "A Marriage Ritual". Poems, 1929-1935. ]

domingo, setembro 11, 2005

Comentário desnecessário (20).

Destinatário difuso.

Não, nada. Nada saberá que passaste por aqui e que, pouco tempo decorrido, saíste e não deixaste, atrás de ti, o tracejado claro dos teus passos. Não. Nada te seguirá até aos lençóis que agora ocupas, certo da rasura a que tu-só procedeste. Murmuro o teu nome por entre o rumor seco das ervas.

(Vem. Reaparece.)

À procura de um texto autobiográfico (13).

A decade of cutting away
dead flesh, cauterizing
old scars ripped open over and over
and still it is not enough.
A decade of performing
the loving humdrum acts
of attention to this house
transplanting lilac suckers,
washing panes, scrubbing
wood-smoke from splitting paint,
sweeping stairs, brushing the thread
of the spider aside,
and so much yet undone,
a woman's work, the solstice nearing,
and my hand still suspended
as if above a letter
I long and dread to close.


[ Adrienne Rich: "Towards the Solstice". The Dream of a Common Language, Poems, 1974-1977. ]

Comentário desnecessário (19).

Pés na terra.

Estou sentado no jardim, na relva que agora já não é a mesma de quando eu era pequeno; sentado no meio das quatro ou cinco laranjeiras que sobrevivem, ano após ano, pesadas de fruto; sentado a ouvir correr a água nas mangueiras, nas lajes da escadaria principal, pelas fendas do empedrado.

(E é só.)

quinta-feira, setembro 08, 2005

Comentário desnecessário (18).

Evolução parcial da espécie.

Recordo com saudade e apreensão os dias em que podia dizer, de forma mais ou menos inconsequente, aquilo que achava de determinada pessoa ou situação - custasse a quem custasse. Apercebo-me agora, talvez demasiado bem, de que a em nada eventual brutalidade do embate verbal turvava, então, a mensagem a ser transmitida; por outras palavras, o conteúdo era perfeita e completamente destruído pela forma que lhe servia de veículo.

(Mas aprendi.)

Aprendi, com o passar dos anos, a dizer coisas de uma crueldade brutal com a subtileza de um cirurgião experiente, com a precisão de uma anestesia local. Surgiram-me, por geração espontânea, variações no tom de voz, no nivelamento das sobrancelhas, na posição das mãos sobre uma mesa; milhares de sorrisos cujas ínfimas inflexões a pedra de Rosetta não lograria decifrar. E tornei-me arsénico em proporções mínimas, imperceptíveis - silencioso e indetectável mesmo numa toma continuada.

("Senhoras e senhores: o esfinge.")

sábado, setembro 03, 2005

Comentário desnecessário (17).

Paleotextos (10).

avó.

a senhora baptista, com pê, sentada numa cadeira, o sol nas pernas. o olhar triste e baço que faz correr a vista. as mãos, quedas, no colo, óculos desviados. ela a sorrir e a dizer-me "sabes filho... toda a minha vida me disseram que eu não era capaz de dar uma ordem. e depois ele morreu. e agora já não fico sentada, à espera de que me digam o que fazer. agora sou eu que digo aos outros para fazerem as coisas. os gestos herdam-se..."

Dose diária recomendada.

Foi a minha flatmate que me viciou no Doraemon e bastou um episódio para ficar apanhado por esta série. Não é que a história seja particularmente fascinante: Doraemon é um gato-robô vindo do futuro, azul por razões que envolvem o choque de as suas orelhas terem sido comidas por ratos (já repararam que ele não tem orelhas, certo?), que ajuda Nobita numa série de problemas "característicos" na vida de puto. Nobita gosta de Shizuka, uma gaja sonsa e chata como o caraças que está sempre a tomar banho (obsessiva compulsiva?) e é atormentado por Gigante (típico bully com aspirações a cantor) e Suneo (o menino rico lá do sítio). Para a hercúlea tarefa de ajudar Nobita - que, diga-se, é um bocado nabito -, Doraemon usa o seu bolsillo mágico (cf. bolsa na barriga do bicho) do qual saca, com listeza apropriada, invenções rocambolescas adequadas a cada circunstância complicada (leia-se "sarilho") em que Nobita se encontra. E são essas invenções, esses aparelhos, que me fascinam e mantêm colado à televisão durante os cerca de vinte e cinco minutos que dura este desenho animado - porque é preciso ter-se uma imaginação francamente prodigiosa para os criar. Canal Panda, 12h30min e 19h00. A não perder.

(Escusado será dizer que quero um bolsillo mágico para o Natal, boa?)

sexta-feira, setembro 02, 2005

Comentário desnecessário (16).

Paleotextos (9).

azulão.

partiu o copo e cortou as mãos e olhou-se, perfeita, ao espelho da janela que a reflectia lá por dentro de um sítio que conhecia de tactear às escuras. pisou o copo partido, com as mãos cortadas, agora com os pés ensanguentados e lentos. sentou-se no sofá a sangrar. olhou de novo para o espelho. nada resulta quando se é belo. nada resulta - pensou.

Tua (2).

Paleotextos (8).

inocência.

a cara dele, a preto e branco, mãos no rosto como um pianista de dedos esguios. os olhos transpirados. a areia, segunda pele, cinzenta e lisa e macia, tapando-o como uma mortalha. a olhar. sem saber bem para onde mas se calhar estando já lá, no não-onde, qualquer sítio que não fosse ali. o dormir sonhado que se apoderava dos seus cabelos, estendido na cama, ele e dele. a mão, cinza branqueada, e a sua sombra. ele na praia, a pensar que poderia estar em qualquer outro sítio com qualquer outra pessoa e o mar, claustro casular, a sepultá-lo, cada vez mais, na areia lenta.

Tua (1).

Sai.

Tudo na casa grita sai.

(Sai.)

Abandona o sítio onde estás; ruma a nenhures; sai. O sofá onde te sentas, os cobertores da tua cama, a cadeira onde penduras a roupa, os livros nas estantes e nas mesas. Todo o teu universo milimetricamente disposto.

(Sai.)

Parte. Encontra o que não sabes se procuras.

(Sai.)

E volta depois, passado tempo. Conta a história do que viste lá fora deposto, derradeiramente, da tua demanda indeterminada. Volta, pois, e escreve o inefável.