terça-feira, novembro 28, 2006

O mamute descobre mamutes.

Hoje deu-me para pensar, logo às oito e meia, no trabalho que tenho feito nos últimos dois anos. As conclusões a que cheguei, poucas que sejam, têm um tema comum, uma tecla sempre batida e polida do uso como as dos portáteis: a vida - e não sei bem o que isso é - continua e muta-se. Sei que mudei nos dois anos que passaram, que há coisas que cá estavam e deixaram de estar e coisas que não estavam e passaram a estar.

(Isto assim até parece hermético, mas não é.)

Só que, em manhãs como a de hoje, em dias como o de hoje, não consigo deixar de sentir que estou aqui congelado, com a obsolescência de um mamute que ninguém descobre porque descobrir mamutes não tem utilidade alguma.

Eu sou um mamute que descobre mamutes.

Auto-retrato.


















[ Novembro de 2005. Com a participação do Adobe Illustrator CS. ]

Frio e silêncio de madrugada.

Bebi há minutos a quarta chávena de café bem forte do dia. O silêncio e o frio vão invadindo, de hora para hora, o que faço. Começo à tarde, de mangas arregaçadas; termino de madrugada, com camadas sucessivas de roupa a provarem-se insuficientes para me aquecer. Andar a andar, o prédio em que vivo cala-se. Quando entro na cama, teoricamente cansado, estou demasiado acordado para dormir logo. Fico a olhar para o tecto. A adivinhar o percurso calmo dos barulhos lá fora.

Café.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Lavar a loiça.

Acabei agora de lavar a loiça e tenho as mãos na espécie de calor característica de quem acabou de as tirar de debaixo de água quente. Costumava antipatizar, por várias razões, com esta tarefa. Isso passou. Aprendi a aceitá-la como o meu momento de "não pensar em nada" diário. Lavo por regra o bule e as chávenas e, por excepção, a loiça que não cabe na máquina. E enquanto o faço é como se nem estivesse cá.

Chá cá em casa.

Not tomorrow, not next week, not next month.

Eleven o'clock had come and gone. I had to find a way to bring this conversation to a successful conclusion and get out of there. But before I could say anything, she asked me to hold her.
"Why?" I asked, caught off guard.
"To charge my batteries," she said.
"Charge your batteries?"
"My body has run out of electricity. I haven't been able to sleep for days now. The minute I get to sleep I wake up, and then I can't get back to sleep. I can't think. When I get like that, somebody has to charge my batteries. Otherwise, I can't go on living. It's true."
I peered into her eyes, wondering if she was still drunk, but they were once again her usual cool, intelligent eyes. She was far from drunk.
"But you're getting married next week. You can have him hold you all you want. Every night. That's what marriage is for. You'll never run out of electricity again."
"The problem is
now," she said. "Not tomorrow, not next week, not next month. I'm out of electricity now."

[ Haruki Murakami: The Wind-up Bird Chronicle. ]

Três anos e meio.

Uma vez, não há muito tempo, uma mulher francamente sábia disse-me

- Deus nos livre da sinceridade

e a lição, sucintíssima, parece que pegou. Não é uma questão de não ser sincero, entenda-se. É uma questão de relativizar a questão da honestidade como se relativiza o tempo ou o espaço. Sinceridade significa - acaba por significar - "a sinceridade bastante para que não haja a suspeita de que fica qualquer coisa por contar". E se fica, realmente, qualquer coisa por contar,

(ou porque a memória anda cansada ou porque, como um cão que aprende pavlovianamente bem, aprendeu a filtrar o que os outros querem ouvir)

talvez até nem seja assim tão mau quanto se faz parecer. Sempre que me dizem

- Sê sincero comigo, por favor

ou então

- Conto com a tua honestidade

ou ainda

- Ó João, vá lá, contei-te isto porque sei que vais ser sincero comigo

o que as pessoas não sabem é que relativizo a exigência de rigor que me é feita. Porque, como uma arma mal manuseada, a sinceridade custa vidas, amigos, pessoas chegadas e resulta, quase sempre, no isolamento de quem dela abusa.

Também há uns anos, um então amigo, numa tentativa de pôr tudo em pratos limpos,

(o que quer que isso signifique)

resolveu escrever uma espécie de "circular" com tudo aquilo de que gostava e não gostava nos que o rodeavam. Enviada por e-mail. Muito mal compreendida por todos (incluo-me nisto) - e não foram tantos assim - os que a receberam. Tenho o texto algures. Revisitei-o no outro dia. Não havia amargura no tom. Só palavras muito ásperas para quem (ainda) não estava habituado. Iniciado por um "não gosto" cortante, o texto continuava "do joão arrogante que olha de soslaio do alto do seu conhecimento para os outros assim como não gosto do joão pseudo-intelectual nem do joão em modo silencioso nem do joão ausente nem do joão que precisa de um holofote para se realizar ou de dizer constantemente palavras que o coloquem num pedestal nem do joão aparente nem do joão orgulhoso da barbárie nem do joão que se recusa nem do joão dos pretensos jogos mentais nem do joão que espezinha com os olhos fechados nem do joão".

Tinha vinte anos na altura. Ele também.

Não lhe falo desde os vinte e três por, a certo ponto, me ter sentido muito cansado e não ter tido força suficiente para me agarrar. Tenho saudades. Das frases inteiras ditas em coro. De lhe ligar para Southampton (quando lá esteve) sempre que podia e falar com ele a quilómetros. Da cumplicidade estranha que tínhamos. Apesar de tudo meu e teu que pesou e nos deitou ao fundo. Continuo a ter saudades desde Abril de dois mil e três quando falei contigo pela última vez.

Lido com isso em silêncio o mais que posso porque

(Deus me livre da sinceridade)

tenho medo de te ligar e de ouvir um tom estranho a rosnar-me com pedras transparentes; porque a irreversibilidade das coisas é temível. Leias tu isto, escreve num papel - ou diz para ti - que tenho saudades. Na ausência de tudo o resto, bastar-me-á isso.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Fim de tarde (1).

Da janela do meu quarto, aberta no Outono como noutra época do ano, nos dias de chuva mais ainda do que nos de sol, ouve-se o silêncio invulgar da rua. Há o ranger pontual de uma porta. Alguém que passa aqui por baixo, não ciente de que se lhe ouvem os passos. Deixo-me estar à escuta, de estore corrido, até que a quietude me embala e acordo, horas passadas, no mesmo sítio e com o mesmo silêncio lá fora.

A feliz procedência.



Uma falha maior.

Segue-se de falha em falha e tapa-se uma falha com outra maior que a cubra. Remenda-se a parede, pinta-se por cima. Quando a tinta se descasca, metemos papéis com desejos escritos no nicho a descoberto, mímica para santuário menos legítimo. Remenda-se. Tapa-se. Torna-se a pintar. E assim sucessivamente até percebermos que nada alguma vez nos tapará de forma convincente. De falha em falha até o poço secar, até as vozes do velho das malaguetas e da mulher do electricista serem um balbuciar longínquo e incompreensível. Ininteligíveis o alfabeto, o arquear das sobrancelhas, o piscar de olhos imperceptivelmente lânguido, a voz que foge.

Se descobrires ou achares que os meus textos fingem e que sou feliz, diz-mo, por favor.

Da implacabilidade aparente.

Fora eu ela e não teria virado as costas mas continuado naquela escadaria sempre em frente até ser intocável. Repudiaria o romance fácil que me esperava pendente na terra-casa. E de saltos muito altos, tanto que não via o chão, esmigalhava até pó qualquer esperança vaguíssima de redenção. Com óculos escuros ou sem eles. Seguindo em frente como um comboio determinado. Mais alto sempre. Isto de ter objectivos e coração grande tem muito que se lhe diga.

My dog, my hero.















[ Fotografia tirada pela T. - mais fotografias e posts aqui. ]

Six ain't the loneliest number.

Em resposta ao Life Chaser que me desafiou para isto, aqui vão seis coisas que podem não ter nada a ver seja com o que for:

1. Instituí, com a subscrição total da T., uma hora para chá aqui por casa. Durante a semana, por volta das 18h ou um pouco mais tarde. Chá variável, acompanhado por torradas ou um queque com passas;

2. Sou e sempre fui um perfeccionista nas coisas que faço - desde a forma de servir e cozinhar a comida (as minhas saladas, desculpem a imodéstia, são perfeitas) até ao modo como as coisas aqui de casa estão / são arrumadas. A bancada da cozinha, sempre limpa e arrumada, também é exemplo disto. Está tudo confortável, mas ao milímetro;

3. Vicio-me facilmente em pessoas como em coisas, embora não com a mesma intensidade. Algumas das coisas: loiça da Bodum (actualmente, o vício é a Ritzenhoff), chás da Kusmi, Cosmopolitans, ficção da Ali Smith e Henry James e tudo o que consegui encontrar cantado pela Ella Fitzgerald (agora, é mais Billie Holiday). Estar viciado na presença - voz, cheiro, textura do cabelo, charme, gostos, maneira de pensar, etc. - de certas pessoas é mais complicado e ainda hei-de escrever sobre isso;

4. Gosto de sorrir aos cães que passam por mim na rua. Em grande parte dos casos, sorriem-me de volta;

5. Peço desculpa e agradeço em inglês, involuntariamente e por sistema. Digo mais vezes "Sorry!" e "Thanks!" do que "Desculpe!" e "Obrigado!";

6. Vou fazer vinte e sete anos a vinte e três de Janeiro.

That's all.

Reculpa.

Um pedido de desculpa com um "mas" não é um pedido de desculpa - é uma proposta de reculpa.