terça-feira, fevereiro 24, 2009

Fevereiro passado.

Fevereiro foi um mês de muitos verbos violentos. Destes destaco mudar e cortar, sendo que me é muitas vezes necessário cortar quase em absoluto para poder mudar alguma coisa; quase, que nenhum corte é absoluto, bem sei. Mudou-se de tudo um pouco: roupa e hábitos; a disposição da casa e a disposição com que andava; de ares e de música e de noites e de dias. Leu-se bastante, mas nem de longe o suficiente; escreveu-se um pouco, mas nem de longe o bastante. Chorar foi outro verbo de Fevereiro; e pensar; e beber, talvez em demasia; e dormir, quase sempre de menos. A par destes verbos, aqueloutro - cortar: do cabelo à rotina; cortar com aquele cansaço persistente e com os fantasmas mais pesados; com a pele amolada dos anos, das tristezas, e de uma mão-cheia de verbos a cujo elenco de caracteres não devemos sequer emprestar a voz. E contigo - cortar contigo como quem corta tecido: rasgar a direito, seguindo o fio até que finde. Fevereiro foi um mês pródigo em verbos difíceis e aguçados e tão necessários. Foi, terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo. Quanto a mim, já é Março.

Blur.

Fumo sem fogo.

A vela ao lado do computador apaga-se; a linha cinzenta e vagarosa que está agora onde antes estava a chama indica-me que ou pavio, ou cera, ou ambos chegaram ao fim. À minha esquerda, apenas fumo sem fogo.

Play it again, Sam.

Não se passa nada, a sério. Sim, tenho comido - menos, mas tenho comido. Estou mais magro, sim. Sim, tenho conseguido dormir. Também menos, sim. O quê? Desculpa, não percebi. Não, não passo os dias a pensar no que aconteceu. Estou a dar aulas de inglês, sim; as de piano também continuo a dá-las. Sim, estou bem; quanto baste. Ouve, se não acreditas não posso fazer nada. Funciono, o que já não é mau: tenho dias melhores e piores, o que suponho que faça parte da coisa; mas funciono. Não, não acho que baste funcionar, mas de momento tem-me bastado. Pois devia, mas não me vou forçar a isso. Sim, eu sei; eu sei. Não é grave. Não, a sério que não se passa nada. Vá, deixa-me ir que ainda quero ler um bocado antes de me deitar, pode ser? Vá, abraço, até amanhã.

Prefixos.

Não me iludo, mas desiludo-me muitas vezes.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Debaixo do tapete.

Não te encontro debaixo do tapete, como a chave da porta da entrada. Não estás dentro do bule ou das latas de chá. Tão-pouco achei sinal teu no pó dos livros, ao fundo das gavetas mais fechadas, dentro da terra dos vasos da varanda, atrás dos quadros da sala, ou debaixo do sofá. Hei-de procurar o teu corpo por toda a parte sem vez alguma te achar; calcorrear as ruas da cidade; correr os alfarrabistas mais obscuros onde apenas uma luz poeirenta existe entre as lombadas abolorecidas e as paredes salitrosas. Hei-de sentar-me nos degraus das igrejas para ver se te vejo, sabendo tão bem que se te visse não te reconheceria já e me passarias ao lado. No ciclo errático dos dias em que te procuro com a certeza de não te achar, hei-de cansar-me - de mim, de ti, desta busca tão estúpida quanto coxa. E sei que aí, nesse cansaço, te encontro: à minha porta, com ar de quem espera há anos que eu chegue a casa para poder finalmente entrar, uma vez que debaixo do tapete não havia chave ou sinal de mim.

Objectivamente.

Today's the day.

Junto ao portão de ferro forjado pintado de verde e ferrugem, há uma mulher que espera que os dias com ele melhorem, que as discussões cessem, que o aro fino de ouro que traz em torno do dedo anelar esquerdo não lhe pese tanto que a deite por terra. Lembra-se de repente do ditado favorito do pai, sobretudo porque sabe agora, perfeitamente, que quem espera nunca alcança. É esse o instante em que leva a mão ao trinco e sai, sem malas ou roupa de sobra; deixa janelas por fechar, cortinados por correr, a porta das criadas aberta na ilharga da casa, a mangueira a esvair-se sobre a relva. Viver ali, com ele, há muito que não é possível.

The thing with feathers (3).

Ter por vezes a sensação de que me esqueci da esperança no bolso de um casaco que deixei algures.

Wednesdays.

Depois de ter dado uma aula, fazer até casa o caminho desde a Av. de Roma. Na mão direita, um dicionário; na cara um sorriso tão discreto quanto inesperado.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

O salto.

Chove. Ao fundo do pontão há a forma de uma mulher; tem os braços e a roupa colados ao corpo; olha para a água com a certeza adiantada do salto. Calcula que não demorará: está frio, não nada há anos, sente-se cansada - não há-de debater-se muito. Os lábios mexem-se devagar; não fosse a estática da chuva, talvez se percebesse o que diz. Pára de chover. No pontão não há já a forma de uma mulher com braços e roupa rentes ao corpo. Os círculos concêntricos na água cessaram, restando apenas um - maior, mais agitado - que, não tarda, se aquietará também. Um pouco à tona, um lenço vermelho que se espalha e escurece para logo deslizar subaquático, como uma mancha de sangue indissolúvel.

Sinais de fumo.

All my friends.

Haver quem nos arranque do nosso torpor característico; quem nos sacuda o tédio da roupa, e nos cole na cara um sorriso quando não o julgávamos possível. Haver quem nos tire cigarro e isqueiro da mão, quem nos encha de novo e de novo o copo. Haver quem diga

- Passa cá hoje e traz música

ou

- Vai ficar tudo bem, calma

a meio de uma noite de chuva; quem nos faça atirar para cima do corpo um casaco forte, e sentir que valeu a pena o caminho pouco enxuto até ali. Haver quem nos tape quando adormecemos exaustos em sofá alheio e adormeça ao nosso lado; quem apague as luzes e deixe cair no escuro uma palavra quente e inaudível.

Últimos ritos.

E nenhum de nós tornará a percorrer a distância a que estamos um do outro.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Sintaxe.

Quando chegou ao final da frase, sem sequer se atrever a voltar atrás e relê-la, a única coisa que se lembrou de pensar foi que aquelas três palavras - causadoras de um choro de tal maneira violento que lhe tinham nascido flores de sangue pisado nas pálpebras - eram um sintagma preposicional.

Correio (1).

The thing with feathers (2).

Pode ser que a esperança seja a última a morrer, mas é a primeira a levar um tiro no estômago.

À procura de um texto autobiográfico (43).

I've always known it. And here for three months I've been walking around with this noble, bittersweet expression on my face - I mean how self-deluded can you get?

[ Richard Yates: Revolutionary Road. ]

Dúvidas iniciais.

Quando acabo de ler o programa de inglês de 10.º, 11.º e 12.º anos, fico com duas dúvidas: se o esquema sobre as macrofunções do discurso não é, na realidade, uma representação de três dos círculos do Inferno de Dante; e se o diagrama sobre a organização das componentes do programa não será no fundo um mapa da Terra Média.

Candide.

Éramos felizes. Vivíamos juntos numa casa com alguma idade e à qual faltava uma divisão para que fosse do tamanho certo. Tínhamos horários diferentes, mas à noite lá nos encontrávamos: quem chegasse primeiro esperava sentado no sofá a ver as notícias, ou ia adiantando o jantar. De manhã, antes de sair, escrevíamos coisas parvas um ao outro que deixávamos espalhadas um pouco por toda a parte - listas de compras, recados e tarefas pendentes, declarações de amor em três linhas ou menos. Não estou certo de que alguma vez tenhamos pensado que as coisas acabariam - assim, ou de outro modo. Éramos felizes, e o fim de tudo não existia.