sexta-feira, novembro 20, 2009

Wise blood.

Corto-me sem querer a lavar uma faca. O fluxo esbranquiçado da torneira tinge-se de imediato. Desligo a água, agarro a toalha mais próxima, envolvo a mão nela. Sobre o lavatório, uns quantos pingos esporádicos de um vermelho vivo que se deixa dissolver aos poucos. Agarro a mão junto ao peito como um animal ferido; encosto-me ao xadrez verde e branco da parede. Deixo-me ficar por uns minutos, até ganhar coragem suficiente para espreitar os estragos feitos: três sulcos pouco fundos, contíguos e já estanques, e um quarto - maior, mais profundo -, que se aviva a cada flexão do dedo. Até que pára, e o dia continua.

Frente-a-frente.



Chapitô.

Estamos os dois no Chapitô, no espaço reservado a fumadores - uma vista desafogada sobre telhados, monumentos, Tejo. É terça-feira, quase quarta. Por um canto da divisão, entra um frio que se vai entranhando à medida que a noite avança, e que nem um casaco mais forte consegue contrariar. Em cima da mesa, tudo: mãos, os cotovelos ocasionais, telefones, um maço de cigarros de mentol trazido directamente de solo belga, máquina fotográfica, dois pratos com duas tostas mistas polvilhadas com orégãos; do meu lado, um gin tónico; do dela, um copo de espumante. Hoje celebra-se. Como é costume, não damos pelo passar do tempo - e é só quando nos avisam de que aquele será o último pedido que nos apercebemos de que começa a ser hora de ir. Apesar dos avisos e do frio, deixamo-nos ficar até nos desligarem as luzes. Protestamos por um minuto, mas finalmente agarramos nas nossas coisas, e galgamos os degraus até à saída - vivos e entre risos, na noite surpreendentemente quieta da Lisboa a que ela regressa dentro de meses.

A circunstância precisa.

Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida —
são tão nossos como as más recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.


[ Rui Pires Cabral: "Nunca se sabe." Oráculos de Cabeceira. ]

Idiossincrasia (9).

Faltar-me muitas vezes a vontade de escrever sobre o que se passa; outras tantas, a vontade de escrever sobre o que não se passa; e, por vezes, a vontade de escrever.

Correio (3).

quinta-feira, novembro 12, 2009

Pó.

Fino, branco e absoluto: assim é o pó desta casa - um pó que se espalha do tecto ao chão, que se cola também às paredes, aos vidros das portas, aos pulmões. Os caminhos que trilhamos estão hoje transcritos por ele. Há o trajecto mais gasto - entre quarto, cozinha e quarto -, que devolve ao soalho a sua cor original; um outro não tão usado - quarto, piano, quarto; há a impressão exacta da sola de cada sapato, às vezes esborratada por uma mudança de curso imprevista ou mais súbita. Daqui a dias, tudo limpo. Não restará quase indício de ter havido aqui em casa um pó bravio, que tomava território sem aviso. Até que, anos mais tarde, a lapiseira amarela desliza para debaixo da estante; quando metemos a mão a buscá-la, vem branca - envolta num manto ténue daquele pó que, escondido, ali ficou.

Obras (2).



Diário de obras.

Ter aprendido uma palavra: estafe.

O ofício de escrever.

Não gosto
de mistério
e imaginação

Mas assim
não se escreve


[ Adília Lopes: "Quero escrever." Dobra. ]

quinta-feira, novembro 05, 2009

Quanto basta.

Os sons distorcem-se por um segundo. Repetem-se, desviam-se, voltam a um sítio outro. Oiço o fechar da tampa do piano, o barulho das ferramentas a serem guardadas, terminada a operação. Sem que ele o saiba, o afinador na sala ao lado torna real o ano que passou desde a sua última vinda aqui. Entretanto houve obras, mudanças; houve dois dias em que o piano ficou pousado sobre a sua ilharga - reerguido no dia seguinte sobre um tapete colorido, com um pó fino ainda a pairar. Do que passou ficam apenas anotações: difíceis de dispor ordenadamente, e resolutas a sacudir de si qualquer lógica ou causalidade. Em todo o caso, são quanto basta.

Domingos (1).







De sterrennacht.

Uma estrada e um homem. O homem está parado no meio da estrada. É de noite. De tantos em tantos metros, um candeeiro emana uma luz que se sustém com dificuldade até às suas fronteiras, onde toca o território da do candeeiro seguinte. Parado na berma, um carro: um pneu furado, um motor voluntarioso, um depósito que não bastou para chegar até à bomba ou povoação mais próximas. É Verão. Acima, um céu estarrecido - estúpido e estrelado como os céus estivais. Debaixo deste, o homem parado. Tem vestidas umas calças de tecido cinzento-claro, uma camisa branca com as mangas arregaçadas; a gravata e o casaco estão perdidos algures no banco traseiro. Em breve, há-de cansar-se de procurar na distância o fogo-fátuo de um qualquer lugarejo a que pudesse chegar a pé, à procura de dormida ou auxílio. Há-de virar-se na direcção do carro: tornar a ele, abrir a porta do lado do passageiro, entrar, trancar-se dentro, fechar vidros, rebater o assento, pôr por cima do tronco o casaco, adormecer até daí a horas. Para onde irá pouco importa - como pouco importam o sítio de onde veio, o porquê da pressa naquela estrada gasta, a mão envolta num lenço com uma mancha fluida e férrea. Chegado aqui, é inútil voltar atrás. E adiante, sabe-o bem, nada o espera.

Traduttore, traditore.

Gostava de, um dia mais tarde, poder traduzir still life por "a vida ainda".

Prefácio.

Quando partires
se partires
terei saudades
e quando ficares
se ficares
terei saudades


[ Adília Lopes: "Marianna e Chamilly." Dobra. ]

Daysleeper.

Calmaria.

Aqueles dois minutos ao fim do primeiro andamento do concerto em ré menor para dois pianos e orquestra, de Francis Poulenc.

Impromptu (3).

- Ouvi dizer que estavas chateado com ele.
- Se tu o dizes.