sexta-feira, maio 28, 2010

Não hei-de beijar esta porta.

Há um torpor característico das partidas: começa nos ombros, que descaem imperceptíveis; passa para os braços, que perdem qualquer fantasma de vigor; a própria respiração pesa. Os olhos prendem-se em sítios avulsos — letreiros luminosos, menus, sinais de trânsito, o brilho do alcatrão depois da chuva. Qualquer ruído é uma intromissão. Pode partir-se de muitas formas e para muitos lugares, mas todas as partidas são iguais — pessoas mais e menos chegadas que vêm despedir-se de nós, dizer «Até breve», «Até logo», «Um ano passa a correr» ou qualquer outra fórmula semelhante, abraçar-se ao nosso corpo que foge, como que a tentar perpetuar um pouco dele no seu. Há partidas que pressupõem chegadas mais adiante. Há partidas que não o chegam a ser, abortadas no último passo. E há, além destas, as partidas que o são no pleno sentido do termo: sem volta a dar, irreversíveis, factos consumados. Lembro-me de repente daquele passo da Eneida — será da Eneida? ando tão esquecido —, das mulheres que se abraçam às portas e lhes dão beijos. Quando partir, não hei-de beijar esta porta.

Vermelho (6).

A última vez.

Abraço sempre os que me são queridos como se fosse a última vez, porque para mim é sempre a última vez que os abraço.

quinta-feira, maio 27, 2010

Sal.

E como se não sustivesse o choro, tombou a cabeça entre as pernas e deixou que os solavancos rítmicos do corpo o embalassem. Quando acordou, era dia. Do pranto da noite anterior, apenas o rasto salino na camisola escura e ao longo da cara, até ao ponto em que a barba principiava.

Anatomia (3).

terça-feira, maio 18, 2010

À procura de um texto autobiográfico (47).

If you think you can leave the past behind
You must be out of your mind
If you think you can simply press rewind
You must be out of your mind, son
You must be out of your mind


[ The Magnetic Fields: "You must be out of your mind." Realism. ]