Para uma anatomia da memória.
A memória é uma coisa estranha. As recordações que temos de pessoas, de sítios, de situações - são coisas altamente perecíveis; deterioram-se facilmente. E é quando esse processo de deterioriação tem início que a imaginação, "madre de todalas cousas", começa a colorir os espaços que vão ficando em branco com pormenores que não estiveram realmente lá. Esquecemo-nos, convenientemente ou não, das brigas, dos duelos de palavras feitas arma de arremesso, das ausências, dos silêncios durante jantares, dos choros quietos nas almofadas.
Esquecemo-nos.
À memória, bicho muitas vezes exausto, interessa-lhe apenas recriar em Technicolor uma realidade extinta e, não raro, cromaticamente desfalecida. É por isto que é preciso coragem para arrancar às garras da imaginação, vítima de demasiados romances camilianos, a realidade. Despi-la. Dar-lhe um banho de agulheta. Fervê-la em água e sal. Desinfectá-la. Descarná-la como a um fio. E contemplar a ossada que foi - objectivamente, sem carne que a encorpe.
É preciso aprender a desfazer o puzzle. Custe o que custar.
(Até se tornar fácil. Instintivo. Um reflexo.)
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