A memória dos sítios.
A S. diz-me que é "muito triste perder a memória dos sítios". Vem isto a propósito de lhe ter dito que não vou aos arredores de Marvão, terra da minha avó, desde que ela morreu - há coisa de cinco anos. A casa dela era a casa em que se passavam os Natais e os Verões, pelo menos até aos dezassete ou dezoito anos, idade em que adquiri o gosto por ficar sozinho em Lisboa o mais que podia.
Quando a minha avó morreu, eu estava a estudar para as duas cadeiras que deixara para Dezembro e que ditariam a conclusão da Licenciatura. Foi também a altura em que o meu primeiro relacionamento "sério" terminou. Lembro-me de não ter conseguido comer
(bebia apenas água com açúcar)
durante quase uma semana; lembro-me da primeira coisa que comi depois disso; e lembro-me de ter sentido o primeiro embate da morte da minha avó Joaquina apenas dois meses passados sobre ela. Um dia, sei-o bem, hei-de voltar ao sopé de Marvão. Hei-de percorrer a estrada que, lateralmente, liga a casa da minha avó
(e as casas que lhe estão próximas)
ao cemitério e a uma fonte; hei-de abrir o portão pesado e o portão que fica metros à frente e sentar-me em frente à campa dela e do meu avô. Mas, feito isto, a minha avó estará morta: deixarei de a ver como vejo, risonha, no último almoço que tive com ela em Agosto desse ano; ou ao fundo da escada - da qual tantas vezes temíamos que caísse na sua pressa de abrir a porta quando nos ouvia chegar -, com os olhos chorosos por nos ver voltar a Lisboa no fim das férias. Quer virássemos para cima ou para baixo, ao fundo da rua, a minha avó dizia adeus no torpor gélido da madrugada; acenava-nos até nos perder de vista e por vezes depois disso. Já quase em Portalegre, imaginava-a a tornar às rotinas do seu dia, às dores ocasionais, ainda um pouco amachucada pelas partidas a que nunca se conseguiu acostumar.
Sei que a casa da minha avó já não é a casa da minha avó. Mas a casa da minha avó nunca deixará de ser a casa da minha avó.
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