terça-feira, maio 20, 2008

Ficção (53).

Saí de casa só com o que consegui atirar para dentro de uma mala. Deixei que a porta se fechasse atrás de mim, sem dar volta alguma à chave que te tinha deixado em cima da cama, encerrada num envelope. Imaginava-te no café com os teus amigos; a beberes o teu peso em álcool; a gabares a esposa dedicada que tinhas em casa e a quem um levantar de mão bastava para garantir amor e obediência. E eu a correr para a porta do prédio onde vivíamos, para o carro da Zita que me dizia

- Despacha-te, olha que ele ainda aparece aí!

numa voz assustada de quem pensa que sabe o que foram aqueles anos contigo. Já no carro, olho para o meu braço esquerdo, rente ao peito desde há uma semana. Tiro-lhe as ligaduras. Ainda me dói. Sei que há-de haver um momento em que eu me quebro e tu te deixas; o instante em que no meu braço não restam já as marcas enegrecidas com a forma difusa da tua mão.