Ficar.
Há no início de todas as coisas um desastre. O nosso, por exemplo, foi termo-nos apercebido de que não chegávamos - de que eram precisas mais e mais pessoas entre nós para nos conseguirmos sobreviver. Assim começou o tempo dos nossos escassos encontros. Saías do apartamento antes de mim, ou saía eu. Vestia-me à pressa, tu também, em dias e horas assíncronos. Trabalhávamos, voltávamos a casa, dávamos o beijo mecânico do jantar e comíamos com a televisão ligada num canal qualquer. Adormecíamos. Havia noites em que não trocávamos uma palavra e não fazia mal porque não havia muito que tivéssemos a dizer um ao outro - ou, havendo, era preferível que ficasse por dizer. Quando não dormíamos em casa, avisávamos antes. Fingíamos reuniões, jantares, saídas com amigos. Dormíamos noutras casas, noutras camas, com outras pessoas. E quando entrávamos no nosso prédio, passado um dia ou passados muitos, respirávamos fundo antes de subirmos a escada e metermos a chave à porta. Vivemos assim quarenta anos porque não sabíamos como viver de outra forma: sem nos odiarmos um ao outro, e a nós mesmos por nos termos deixado ficar.
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