quarta-feira, dezembro 21, 2005

Ficção (22).

Lembravas-te de mim como quem se lembrava de um hábito velho; era-te instintivo; nem tinhas de pensar. Tocavas-me à porta num fim-de-semana em que te sentisses perfeitamente sozinha e, com a voz já turva do álcool, dizias

- Sou eu, deixa-me entrar

ao carregar compulsivamente no botão do intercomunicador correspondente ao meu andar. Segundos passados, a porta abria-se e estavas a salvo. Era esta a tua rotina há quatro anos atrás, quando ainda vivias naquele apartamento em Campo de Ourique, perto de uma pastelaria que, dizias-me tu, fazia os melhores pastéis de Belém que tinhas comido. Servia-te, sempre que possível, de bóia para os teus desastres emocionais. O resto não importava. Como não importava saberes o meu nome

(às vezes Mário, outras vezes José, outras vezes ainda Francisco)

porque o meu nome

(Artur)

era irrelevante. Tocavas. Subias. Choravas. Falavas. Sorrias. Saías. Até ao dia em que me mudei e deixei de te ouvir tocar à minha porta.