A pena trimestral.
Quando tinha dois ou três anos - não me lembro - virei-me para a mulher que me tirava sangue de três em três meses e perguntei-lhe, com veemência incaracterística para a idade, se sabia o que era (e onde ficava) Saturno.
(Não sei o porquê de Saturno. Talvez os anéis.)
A surpresa inicial perante a questão pariu um sorriso complacente de quem não acreditava que a criança gordinha e rosada que tinha à frente pudesse ter feito aquela pergunta. Não tive resposta. Mas lembro-me de, a partir daí - e até à adolescência -, entrar mudo no laboratório; lançar olhares letais à recepcionista e espernear como um possuído enquanto a analista fazia o seu trabalho. Lembro-me da cara enrugada do bombeiro que, vindo da sala de espera, entrou uma vez na saleta onde estava para me segurar as pernas. Saía de lá mais calado do que entrava, a odiar o mundo; recuperava ao longo da manhã. O meu tio e a minha mãe, que me levavam, chegavam prostrados ao final do dia. Fui uma criança cruel. Língua afiada e uma propensão horrível para dizer coisas ásperas. Um monstro de egoísmo. Quando penso em mim nesses anos sinto-me fisicamente mal.
Passei da agressividade perante as análises ao quase-desmaio - um estado pouco agradável entre a perda de consciência e a presença dela. No sítio a que vou desde os meus dois anos, conhecem-me pelo meu terror a agulhas. Tentam falar comigo, distrair-me; dizem-me para ouvir o que está a dar na rádio; falam-me de como o tempo está bom, mau ou assim-assim. E eu que deixo de ouvir, que me esqueço de respirar enquanto a seringa me esvazia de uma centésima parte de mim, espero a resposta à pergunta que fiz quando tinha dois ou três anos: espero que me digam onde (e o que) é Saturno, que me segurem como se faz a uma criança mesmo que cruel e me deixem chorar porque isto - o que quer que isto seja - me dói.
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