Ficção (43).
Não nasci para ficar solteira, entendes? Também não nasci para ficar contigo. Sei-o há muito tempo. Acordo todos os dias eu. Tiro fotografias aos meus pés e às minhas pernas como uma criança parva; tiro-me fotografias dentro da banheira cheia de água em que finjo que sou uma sereia com as ideias trocadas. Às vezes penso em deixar-te na bancada da cozinha um
"Volto quando voltar"
escrito no verso de um talão de supermercado. Mas tu não o ias ler. Quando voltas do trabalho às tantas da manhã, finjo que durmo - eu, que tenho insónias desde os meus dezanove anos, quando descobri que existiam as horas benditas da madrugada e a noite. Tu acreditas. Tiras a roupa, tomas banho, comes qualquer coisa, lavas os dentes
(sigo todo o teu percurso de olhos fechados)
e deitas o teu corpo mudo ao meu lado. Abraças-me e eu deixo. Quando sei que dormes, saio da cama e substituo o vazio do meu corpo por uma almofada
(tu não notas a diferença)
e vou para a sala. Ligo a televisão e fico a olhar para o ecrã durante horas a fio. Sei que acordas às dez. Desligo o televisor, levanto-me do sofá e substituo-me quietamente à almofada. Acordas com um sorriso e eu falsifico outro. O que tu não sabes é que eu estou aqui com medo de que a terra me engula se te deixar - e sabendo tão bem que, se ficar contigo mais um dia, a minha voz vai dar lugar a um chiar meigo e imperceptível; a um ritmo fixo de esposa obediente que nunca hei-de ser, mesmo que te conseguisse amar.
Ainda com o sorriso de cera na cara, pergunto-te se queres café e finjo que começo outro dia contigo.
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