quarta-feira, dezembro 10, 2008

Ficção (62).

Se me resolver a não tornar a abrir as portadas das janelas será sempre noite lá fora: os pássaros deixarão de ensaiar o seu canto agudo e cíclico, os carros deixarão de passar na rua lá ao fundo; é até possível que não toque ninguém à porta, ou que o telefone não se ilumine como faz quando recebo um telefonema ou uma mensagem. Se deixar corridas as cortinas é noite aqui dentro e não faz mal. Deixo-me andar em pijama, percorro os andares sabendo que é noite, e que à noite as coisas perdoam-se: as falhas, as inseguranças, as almofadas molhadas pelo choro, ou mesmo as coisas de que nos esquecemos, as luzes que deixamos acesas para nos sentirmos mais acompanhados no nosso exílio voluntário. À noite o tempo não passa: quando é sempre noite não escurece e não amanhece; posso ficar aqui sentado na sala com o coração que ninguém resgata porque não dou sinal de vida. É de noite e não há heróis - só gente como eu, gente triste de pijama e roupão; gente que vai até à cozinha buscar qualquer coisa para comer ou beber, sentindo o frio a infiltrar-se pelas nesgas dos chinelos. E é também na constância da noite que podemos dedicar-nos a esquecer o que nos foi querido: a casa que partilhámos ainda que por apenas uns meses e na qual ficaste; a cara que fazias quando acordavas; as tardes passadas encostados um ao outro a ver o que quer que fosse na televisão a que tirávamos por hábito o som. São estas coisas que ficaram como esquírolas que esqueço nesta noite permanente; que tento tirar de debaixo da pele, com insucesso abundante a cada tentativa, até desistir e perceber que não é a noite que é permanente: és tu.