terça-feira, dezembro 27, 2005

Ficção (24).

Disseste-me

- Entende.

Eu ainda a dormir, uma recusa em acordar. Tu a tocares-me no ombro e a perguntares-me

- Estás a ouvir?

num tom roufenho e desgastado que acabei por associar à voz que tinhas sempre que te sentias culpado. Disseste-me

- Natália, tu tens de entender. Tu tens

e eu a pensar nas coisas que tinha para fazer durante o dia; na roupa que me esperava na lavandaria; nas compras

(pão, chocolate, queijo, chá, cenouras, alface, vinho branco, adoçante)

ainda em lista. Eu a pensar na tua mão no meu ombro; a pensar nas maneiras infinitas de ta fazer tirar dali. Quando me pus a pensar naquilo que vi em ti, dei por mim a não perceber: tu, um homem baixo; o teu hábito quase obsceno de deglutir ruidosamente minúsculos rebuçados para a tosse; a tua incapacidade crónica de te despedires com um beijo; a tua ejaculação demasiado célere e o pedido de desculpa gaguejado subsequente; o teu receio estúpido em encontrares-te comigo em lugares públicos. Virei-me para ti e disse-te

- António, estou grávida.

Disse-to porque sabia que era a única maneira de me ver livre de ti sem dar excessivas voltas à cabeça. Disse-to porque, sendo mentira, era a frase singular que te apagaria de mim; a borracha de efeito imediato. Levantaste-te. Calçaste os sapatos. E sem uma vez olhar para trás fechaste a porta de mansinho.

(E nunca mais ouvi de ti.)