segunda-feira, novembro 13, 2006

Três anos e meio.

Uma vez, não há muito tempo, uma mulher francamente sábia disse-me

- Deus nos livre da sinceridade

e a lição, sucintíssima, parece que pegou. Não é uma questão de não ser sincero, entenda-se. É uma questão de relativizar a questão da honestidade como se relativiza o tempo ou o espaço. Sinceridade significa - acaba por significar - "a sinceridade bastante para que não haja a suspeita de que fica qualquer coisa por contar". E se fica, realmente, qualquer coisa por contar,

(ou porque a memória anda cansada ou porque, como um cão que aprende pavlovianamente bem, aprendeu a filtrar o que os outros querem ouvir)

talvez até nem seja assim tão mau quanto se faz parecer. Sempre que me dizem

- Sê sincero comigo, por favor

ou então

- Conto com a tua honestidade

ou ainda

- Ó João, vá lá, contei-te isto porque sei que vais ser sincero comigo

o que as pessoas não sabem é que relativizo a exigência de rigor que me é feita. Porque, como uma arma mal manuseada, a sinceridade custa vidas, amigos, pessoas chegadas e resulta, quase sempre, no isolamento de quem dela abusa.

Também há uns anos, um então amigo, numa tentativa de pôr tudo em pratos limpos,

(o que quer que isso signifique)

resolveu escrever uma espécie de "circular" com tudo aquilo de que gostava e não gostava nos que o rodeavam. Enviada por e-mail. Muito mal compreendida por todos (incluo-me nisto) - e não foram tantos assim - os que a receberam. Tenho o texto algures. Revisitei-o no outro dia. Não havia amargura no tom. Só palavras muito ásperas para quem (ainda) não estava habituado. Iniciado por um "não gosto" cortante, o texto continuava "do joão arrogante que olha de soslaio do alto do seu conhecimento para os outros assim como não gosto do joão pseudo-intelectual nem do joão em modo silencioso nem do joão ausente nem do joão que precisa de um holofote para se realizar ou de dizer constantemente palavras que o coloquem num pedestal nem do joão aparente nem do joão orgulhoso da barbárie nem do joão que se recusa nem do joão dos pretensos jogos mentais nem do joão que espezinha com os olhos fechados nem do joão".

Tinha vinte anos na altura. Ele também.

Não lhe falo desde os vinte e três por, a certo ponto, me ter sentido muito cansado e não ter tido força suficiente para me agarrar. Tenho saudades. Das frases inteiras ditas em coro. De lhe ligar para Southampton (quando lá esteve) sempre que podia e falar com ele a quilómetros. Da cumplicidade estranha que tínhamos. Apesar de tudo meu e teu que pesou e nos deitou ao fundo. Continuo a ter saudades desde Abril de dois mil e três quando falei contigo pela última vez.

Lido com isso em silêncio o mais que posso porque

(Deus me livre da sinceridade)

tenho medo de te ligar e de ouvir um tom estranho a rosnar-me com pedras transparentes; porque a irreversibilidade das coisas é temível. Leias tu isto, escreve num papel - ou diz para ti - que tenho saudades. Na ausência de tudo o resto, bastar-me-á isso.