quarta-feira, agosto 12, 2009

Isso mesmo.

Podia escrever sobre Lisboa: sobre a luz da cidade, sobre o azul característico do céu, que varia consoante o sítio onde estejamos. Podia falar do rio visto dos miradouros, do passar da aragem de Verão na espessura das árvores ao longo das calçadas íngremes; dos jardins pequenos, semeados um pouco por toda a parte. Mas não. Escrevo antes isto: é segunda-feira, pouco passa das quatro, estamos no Noobai, e vamos ficar aqui até pouco depois das nove. No tempo que decorre entre o momento da chegada e da partida, pedimos umas dez ou doze bebidas, que consumimos com rapidez proporcional ao calor que está; destaco a limonada suíça. Passamos a tarde a falar, sem nunca nos faltar o assunto; ficamos exaustos de tanto rir. À hora a que saímos, há já um vento fino que nos corre por baixo dos pés e rente aos ombros, aos braços. Despedimo-nos junto a um semáforo; a luz passa a verde: ela desce a Rua do Alecrim, eu sigo para o metro. A dado momento penso "Alguém que confunda quem sou com o que escrevo não me reconheceria". É isso mesmo.

Noobai.







Is that all there is?

Vista de trás, a cabeça dele inclina-se um pouco para a esquerda; segue as luzes vivas do carro, que se diluem na noite. Esta é, para todos os efeitos, a última vez que ambos se verão, apesar das vidas relativamente longas que hão-de ter. Entretanto, um deles casa-se, apercebe-se do erro, disfarça, divorcia-se; do outro sabe-se pouco - escrita vária e dispersa, tropeções afectivos, alguns avistamentos na capital e arredores. Quem o vê diz que está bem, entre os cigarros que de súbito voltaram à cena, e o álcool que consome a desoras.

Seja.

Mas tornemos àquela noite: ao momento em que aquela cabeça, vista de trás, segue o carro que era o dele até o perder de vista. Depois desse instante, olha ainda a estrada fosca por uns minutos, sabendo que, àquela hora, nenhuma luz virá. Não sabemos se chora, mas temos as nossas suspeitas.

Twice the loser.

Numa discussão comigo mesmo perco sempre duas vezes.

Pela raiz.

Daí que eu seja um mal que só se possa cortar pela raiz.
Ou nem isso. Talvez mal não haja, mau não seja:
apenas pura tristeza.


[ Daniel Jonas: "Psicodrama." Os Fantasmas Inquilinos. ]

Olha que não.

Há um tiro que tu dás no pé, e é só esse tiro certeiro que conta. Já sei: vais dizer que foi intencional, que era ali mesmo que querias que a bala fosse parar. Olha que não.

Impromptu (2).

- O que é que achas?
- Sociologicamente, ele é muito interessante.

terça-feira, agosto 04, 2009

Finjamos.

Um cenário que se desmonta. As divisões que voltam à sua quietude intranquila. Cruzam-se na escada ele e ela. O negrume aguçado do cabelo dele refulge contra a pele muito branca dela. Diz-lhe baixo ao ouvido qualquer coisa enrouquecida. Finjamos que sabemos o quê.

Drinks at five.

Um dia qualquer.

Não há nenhuma certeza que nos valha, sempre o soubemos. A caneta suspensa um pouco acima da linha, por exemplo: está assim há quase uma hora, e não há previsão de que volte a tocar no papel. De algum modo, acaba sempre por voltar a escrever. Mas não é certo: a tinta pode acabar-se; o próprio papel; o fôlego dele; a vontade de coar o mundo em palavras; o impulso matinal, ou mais tardio, de se levantar da cama. Tanta coisa pronta a falhar. Um dia decide ficar deitado, deixar fechadas as portadas de madeira que cobrem a janela do quarto; decide não tornar a comer, a beber, deixar-se cair como já foi tantas vezes seu intento. Um dia qualquer, sem marca alguma no calendário - um círculo vermelho oco, um asterisco com menos um traço do que o costume - que o separe dos demais.

Frágil.

Cruzou a ombreira com o último dos caixotes de cartão em braços - um marcado "Quarto - Frágil".

Sequer.

Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.


[ Helder Moura Pereira: "Cheguei a ter medo de te perder." Mútuo Consentimento. ]

The will to change.

Não confundas nunca a vontade de mudar com a capacidade de o fazer.