quinta-feira, junho 29, 2006

Ficção (40).

Sentado numa das mesas do café, consegues ouvir a conversa do casal que está perto de ti. Corres as folhas do jornal até encontrares o que te interessa, lês, passas ao próximo. Bebes o resto do chá que te sobra na chávena, dobras o jornal, levantas-te, pegas na mala, vais ao balcão, pagas, sais. Na calçada o sol que te ofusca; em frente a igreja velha em que entravas sempre muito calado. Entras para dizer olá às paredes e ao chão que te conhece os passos mesmo depois de teres crescido. Sais. Novamente o sol. Apanhas um táxi, respiras fundo e sorris.

Mudança de estação.

CO.

Just Once

Just once I knew what life was for.
In Boston, quite suddenly, I understood;
walked there along the Charles River,
watched the lights copying themselves,
all neoned and strobe-hearted, opening
their mouths as wide as opera singers;
counted the stars, my little campaigners,
my scar daisies, and knew that I walked my love
on the night green side of it and cried
my heart to the eastbound cars and cried
my heart to the westbound cars and took
my truth across a small humped bridge
and hurried my truth, the charm of it, home
and hoarded these constants into morning
only to find them gone.


[ Anne Sexton: Love Poems. ]

Há dias assim.

Proibi-me de enviar pedidos de ajuda aos que conheço, sinais de que socorro era necessário. Há três anos, perdido por vezes no torpor do álcool, enviava mensagens escritas curtas mas afiadas como facas mínimas aos poucos que ainda mas recebiam: nelas entrevia-se o cansaço extremo que aprendi com o tempo a esconder ou negar; o choro que a voz suplicante da Dawn Upshaw triplicava; as tardes e noites passadas deitado no chão da minha casa. Não peço ajuda. Ou faço por não pedir. Sei que maço as pessoas. O choro que me sai quando menos o espero é abafado e dura instantes - domo-o com um morder de lábios ou com uma mão que aperta as carnes do braço oposto. Faço os possíveis por me manter acordado o mais que posso. E é em dias como o de hoje, sem que me vejam e com a certeza de que não me ouvem, que me deixo de interdições e caio; que abro a excepção.

quinta-feira, junho 22, 2006

Texto-gémeo.

Surpreende-me a geometria dos andaimes que estão na parte de trás do prédio onde vivo. Gosto dos sítios onde a tinta se solta do metal e o deixa exposto: o amarelo antigo mistura-se com o alaranjado da ferrugem que parece que esteve sempre ali. Da maneira como as tábuas em que os homens andam são velhas, grossas; estão comidas pelo sol e manchadas de tinta. Sei que um texto-gémeo se escreve porque, sem que tenhas de tentar, vês o mesmo.

A luz bate nos andaimes.

E Penélope tem razão.

I didn't let on I knew. It would have been dangerous for him. Also, if a man takes pride in his disguising skills, it would be a foolish wife who would claim to recognise him: it's always an imprudence to step between a man and the reflection of his own cleverness.

[ Margaret Atwood: The Penelopiad. ]

Tédio e desbloqueio às 18h53mins de ontem.

Num escritório, na sala de espera. Sentado no sofá de veludo vermelho - no braço do qual vou fazendo desenhos com os dedos e que apago com a palma da mão direita -, vejo o vento abanar as árvores, despentear quem chega, enxotar de uma secretária os papéis cheios que a povoam. Esqueço-me das conversas à volta; do livro que leio; dos carros que se acumulam na estrada à frente da casa. Dou umas tantas respostas que me saem automáticas. Levanto-me sem que vejam. Digo já venho sem dizer nada. Volto quando ouvir o meu nome. Escrevo isto na última página de um caderno de música que trago sempre comigo.

sábado, junho 10, 2006

Parêntesis cinematográfico.

Não me incomoda a apatia que tomou conta de mim. Nem sequer os olhos que abrem e fecham em câmara lenta. Ou a televisão à qual tirei o som. Interessa-me dizer só isto, para que se entenda sem qualquer tropeção: não se pode perder um filme como Me and You and Everyone We Know, de Miranda July. E é preciso cautela em dose própria para não se sair dele como eu, aqui sentado no sofá, a perguntar-me se eles dormirão finalmente, se o pássaro continua na árvore, se a arca, como um coração estranho, continua a encher-se.

quarta-feira, junho 07, 2006

Trivialidades auditivas.

Gosto da forma como o Philip Glass toca as peças para piano (sobretudo o conjunto Metamorphosis I-V) de que é autor. De ouvir o Glenn Gould a cantar baixinho enquanto toca - de ouvir as tábuas a rangerem-lhe debaixo da cadeira na qual restava, além das pernas e costas necessárias para a definição de cadeira, o estrado vazio. Da espontaneidade de três takes alternativos do The Cole Porter Song Book cantado pela Ella Fitzgerald.

Comentário desnecessário (52).

I wish I was from Barcelona.

Não. A sério. Mesmo, mesmo, mesmo. Ouvi os I'm from Barcelona na Radar há uns tempos e agora não consigo parar de cantar uma das músicas do último álbum. Esqueçam os antidepressivos. Basta ouvi-los umas quantas vezes por dia. De-li-ci-o-sos. Vá lá! Toda a gente!

I'm gonna sing this song with all of my friends
and we're I'm from Barcelona
Love is a feeling that we don't understand
but we're gonna give it to ya

We'll aim for the stars
We'll aim for your heart when the night comes
And we'll bring you love
You'll be one of us when the night comes

Ficção (39).

Eu não sou eu. Por exemplo a atravessar a rua não sou eu: não olho para os dois lados mas tenho medo de algum carro que possa passar. Não sou eu a escolher livros, CDs, a conduzir os mesmos percursos como espessos carris nos quais me desloco. Não sou eu quem traça a perna como quem erige um muro; quem ajeita os nigérrimos óculos com fulminante apetência; quem bate com as mãos no chão com muita força para que tudo pare. Como e bebo como quem não está cá. Continuo a acordar a meio da noite e a dar voltas meigas como um gato impaciente. Meto gasolina. Tomo café. Funciono.

E, porque a negação é total e sintomática, não sou eu a escrever isto. Não, já disse que não sou eu.