quarta-feira, outubro 21, 2009

Kym.

Segue em frente quando a estrada se cindir. Abalroa o sinal com o carro, atravessa a espessura da folhagem, choca por fim com a pedra que te cerceia a viagem rectilínea. Uma almofada branca improvisada salva-te de morte quase certa - a tua cabeça enterra-se nela. Faróis passam na estrada pouco acima do sítio onde estás. É manhã quando te acordam.

Page-turner.



Às vezes.

Em "Heart skipped a beat", dos The XX, canta-se a dado momento "The more I see, I understand / But sometimes, I still need you". Não é all the time - é sometimes. Há dias assim.

Conta-corrente.

Pensou, com desalento, que Norton se equivocava quando afirmava que o seu amor e o seu ex-marido, e tudo o que tinha vivido com ele, ficavam para trás. Nada fica para trás.

[ Roberto Bolaño: 2666. ]

Mas não.

Uma certa ilusão de continuidade que se agrega ao fim das coisas. Pensa-se que, de uma maneira ou de outra, há sempre algo que fica, sobrevive, perdura - sinónimos vários. Mas não.

Nós com ela.

A linha invisível que traçaste no chão ninguém a transpõe. Ali está: mais muralha que fronteira; mais grilhão que apenas falta de vontade. Permaneçamos nos nossos lados respectivos; gesticulemos um para o outro quando, e apenas se, necessário; estendamos um ramo de oliveira ratado, que passe despercebido - que não seja de imediato reconhecível como trégua, porque o orgulho nos vale sempre de tanto. Quer lhe atribuamos um nome, uma causa - um princípio, fim, ou coisa que o valha -, a linha ali está, ali fica. E nós com ela.

terça-feira, outubro 06, 2009

Slumber.

O momento imediatamente antes de adormecer: os olhos que já mal conseguem manter-se abertos, ainda pousados sobre as linhas centrais de um poema de Helder Moura Pereira; o polegar introduzido entre páginas, na ausência de marcador melhor. O candeeiro da mesa-de-cabeceira fica aceso pela noite fora. Em cima da cama, apenas um corpo adormecido, com um livro tombado na direcção dos olhos agora fechados; os óculos perdidos algures na imensidão do lado desocupado dos lençóis. Às seis talvez acorde, beba água, apague a luz. Talvez não.

Verão (2).





A metade que falta.

Pões dois copos em cima da mesa que ainda cheira a madeira. Ao lado deles, uma garrafa de tinto de Portalegre, de 2004: tu bebes metade, eu bebo a metade que falta. Pões qualquer coisa a tocar - eram os Yo La Tengo, ou eram os Low, já não me lembro -, e deixamo-nos estar na conversa. Deixas cair que às vezes te sentes sozinho na casa em que agora moras. Eu sorrio, e em vez de te dizer que me sinto sozinho em toda a parte, digo-te que não é caso para isso, que o meu telefone está sempre ligado. Ex abundantia cordis. Encomendamos jantar. Trocamos notícias, novidades - umas tantas repetidas. Na hora de partir, quando corro à minha frente as grades do elevador, e antes de a porta se fechar ruidosa, dizemos até amanhã.

Romanos.

There are finally only two categories of humanity in our social lives, as in Roman times there were Roman citizens and non-Roman: those whose names, addresses, and telephone numbers are carefully written into our address books, and those whose names, addresses, and telephone numbers are scribbled on tiny pieces of paper and inserted, with the expediency of the merely temporary, into our address books.

[ Joyce Carol Oates: American Appetites. ]

Terreno pantanoso.

As manhãs são dos meus dias o lugar mais solitário, o instante de todas as saídas em que só o vazio permanece; são a altura do abrir e fechar de portas ligeiramente descompassado, dos passos rápidos e mais trôpegos escada abaixo. Atrás da gente que sai, ficam as casas e fico eu. Acima do meu apartamento, só os passos de um cão que se passeia já entediado pelas divisões em que os vários donos não estão; na rua, os carros vão saindo aos poucos dos lugares onde passaram a noite, revezados por outros que agora chegam. Nem fome costumo ter: vou descalço até à cozinha, ligo a máquina de café; abro a porta do frigorífico, sinto um enjoo leve, fecho-a em seguida. Volto ao quarto, sento-me uns minutos sobre a cama ainda morna. Penso em voltar a dormir, mas não o faço. O que salva as minhas manhãs - se alguma coisa as salva de facto - é aquela cesura invisível das dez horas, em que tudo deixa de parecer tão grave. Chega o carteiro: às vezes tem uma ou duas encomendas para mim, e de repente há música nova para ser ouvida, ou livros com páginas ainda por folhear, ou ambos. De resto, as manhãs são terreno pantanoso - que evito o mais que posso, sob pena de me afundar.