terça-feira, abril 25, 2006

Ficção (37).

A três curvas de casa - e enquanto faço pisca para a esquerda -, a mulher de robe azul-turquesa segura uma caneca de café vermelha na mão e despede-se, lentamente, do sítio onde viveu durante quarenta anos e ao qual não tornará. Quando vê que a vejo, aproxima-se do vidro e põe na cara cansada um sorriso gasto e sulcado. Levanto a mão direita, aceno-lhe invisivelmente e viro.

Comentário desnecessário (50).

Mudança súbita de compasso e andamento.

De repente tornei-me normal. Notou-se primeiro nos meus horários: acordar à uma deu lugar a acordar às nove e pouco. Tomo o pequeno-almoço e leio ou escrevo; posso fazer pausa para almoço, mas não é frequente isso acontecer. Trabalho pela tarde, chá às cinco, jantar um pouco mais tarde. Estou cansado às duas da manhã. Não fico acordado a olhar para o tecto. Adormeço no sofá às vezes e acordo passadas duas ou três horas.

Ocorre-me pensar em coisas soltas como a erva que cresce nas frestas da calçada aqui do bairro, o buraco

(onde antes esteve uma casa)

no contínuo de prédios umas ruas acima, a tua tosse presencial ou como acordo a meio da noite, sem que dês por isso, para me sentar na sala a olhar para o espaço em branco na parede. Dois meses depois de começar a viver aqui, deixei de contar os aviões que passavam. Deixei de reparar nos carros e nos comboios. Acostumei-me.

No vazio onde antes existia uma casa, existe agora uma escavadora e canos como grandes artérias espantadas. Um tédio substituiu o outro. E assim, sucessivamente, a mim.

terça-feira, abril 11, 2006

Só mais dez minutos.

Mais dia, menos dia, o botão de snooze do meu despertador vai telefonar para a APAV.

Chá para dois sem hora certa.

Diagnóstico fundamentado.

Estou viciado.

Já passou o mau tempo.

Não consigo escrever com barulho ou com música. Ou, vá, consigo mas muito raramente. O cérebro atafulha-se e ou ouve o que está a passar na sala aqui ao lado ou então tenta montar e desmontar frases, nem sempre com grande sucesso. Agora, por exemplo, oiço a voz da Chan Marshall a cantar "Where is my love" (The Greatest); e noto - já tinha pensado nisto, mas nunca me tinha dado para anotar - que é uma voz que quase desiste de si. Deu-me para me lembrar do primeiro ano da minha licenciatura, do cumprimento meticuloso do meu horário (leia-se "nada de baldas") de que padecia na altura; de chegar às sete e meia da manhã à faculdade e de me enfiar, até às oito, num dos auditórios a ler ou a tocar piano; do suicídio absolutamente imprevisto da C. no segundo ano; e do meu cansaço quase constante a partir também desse ano. Oiço o sinal de mensagem do telemóvel. Recebo uma fotografia. Sorrio a sério. E lembro-me, sem que o consiga evitar, das palavras da minha mãe quando era miúdo

- Pronto, já passou o mau tempo

e saía, a poder de doses cavalares de açúcar, de hipoglicémias que me deixavam exausto. A. Minha. Mãe. A quem o "mãe" foi carcomendo o nome sonoro que escolheu, repudiando uma geração inteira de Marias. A. Minha. Mãe. Talvez a pessoa mais corajosa que conheço. E eu. Nascido numa família na qual sobrevivem dois espécimes de género masculino (três, se me incluir); rodeado por gente cujas histórias me fascinam e a quem amo, ainda que às vezes muito caladamente. E cheio de medo de morrer sem fazer tudo o que quero.

quarta-feira, abril 05, 2006

Homem-confessionário.

Tenho uma cara que convida ao desabafo e não me incomoda. Não sei se é das sobrancelhas cheias ou da aparência bonacheira: as pessoas escolhem-me para as ouvir e eu mostro-me grato

(e estou-o de facto)

pela escolha. Da dona da mercearia a que costumo ir semanalmente ao homem atrás da partição no parque de estacionamento que me confessa o seu amor pelo violino e música coral. Dos meus amigos mais chegados, com quem partilho um chá, um café, um sumo ou uma tosta numa tarde solarenga aos conhecidos mais remotos. E todos os que existem no meio disto.

Agradeço a preferência.

Dig deeper.

Os limites da palavra.

Passar a culpa de mão em mão até que alguém, por cansaço ou defeito, se ofereça para a receber como a uma comunhão. Como se isso adiantasse. Como se o orgulho valesse alguma coisa. Como se só existisse uma pessoa verbal. E como se este texto pudesse alguma coisa contra a tua indiferença, contra a tua recusa silenciosa em mover uma pedra do nosso caminho para que prossigamos viagem.

(Os limites da minha palavra são os limites da tua vontade.)

Ali como noutro sítio.

The Importance of Elsewhere

Lonely in Ireland, since it was not home,
Strangeness made sense. The salt rebuff of speech,
Insisting so on difference, made me welcome:
Once that was recognised, we were in touch.

Their draughty streets, end-on to hills, the faint
Archaic smell of dockland, like a stable,
The herring-hawker's cry, dwindling, went
To prove me separate, not unworkable.

Living in England has no such excuse:
These are my customs and establishments
It would be much more serious to refuse.
Here no elsewhere underwrites my existence.


[ Philip Larkin: The Whitsun Weddings. ]

Ficção (36).

Encontro-me contigo no sítio de sempre que não tivemos e descubro na tua cara o resto passado dos dias.

Respiração entre frases.

A pena trimestral.

Quando tinha dois ou três anos - não me lembro - virei-me para a mulher que me tirava sangue de três em três meses e perguntei-lhe, com veemência incaracterística para a idade, se sabia o que era (e onde ficava) Saturno.

(Não sei o porquê de Saturno. Talvez os anéis.)

A surpresa inicial perante a questão pariu um sorriso complacente de quem não acreditava que a criança gordinha e rosada que tinha à frente pudesse ter feito aquela pergunta. Não tive resposta. Mas lembro-me de, a partir daí - e até à adolescência -, entrar mudo no laboratório; lançar olhares letais à recepcionista e espernear como um possuído enquanto a analista fazia o seu trabalho. Lembro-me da cara enrugada do bombeiro que, vindo da sala de espera, entrou uma vez na saleta onde estava para me segurar as pernas. Saía de lá mais calado do que entrava, a odiar o mundo; recuperava ao longo da manhã. O meu tio e a minha mãe, que me levavam, chegavam prostrados ao final do dia. Fui uma criança cruel. Língua afiada e uma propensão horrível para dizer coisas ásperas. Um monstro de egoísmo. Quando penso em mim nesses anos sinto-me fisicamente mal.

Passei da agressividade perante as análises ao quase-desmaio - um estado pouco agradável entre a perda de consciência e a presença dela. No sítio a que vou desde os meus dois anos, conhecem-me pelo meu terror a agulhas. Tentam falar comigo, distrair-me; dizem-me para ouvir o que está a dar na rádio; falam-me de como o tempo está bom, mau ou assim-assim. E eu que deixo de ouvir, que me esqueço de respirar enquanto a seringa me esvazia de uma centésima parte de mim, espero a resposta à pergunta que fiz quando tinha dois ou três anos: espero que me digam onde (e o que) é Saturno, que me segurem como se faz a uma criança mesmo que cruel e me deixem chorar porque isto - o que quer que isto seja - me dói.