terça-feira, setembro 30, 2008

The tell-tale heart.

Há semanas mais cheias, semanas em que as palavras não chegam. Depois há as outras: semanas em que todas as palavras parecem estar a mais; sobram. Pomo-las ao canto do prato, varremo-las para debaixo do tapete, ignoramo-las como a um som incómodo ou um vizinho barulhento. Elas persistem, obstinadas - como um coração que bate debaixo do soalho, e cujo som culpado apenas nós ouvimos.

Vermelho (4).



The thing with feathers (1).

Para não me esquecer da última vez em que te vi, fiz uma lista - que recito quase constantemente para mim mesmo - dos teus gestos e da ordem pela qual os executaste: desde o momento em que me sentei à tua frente e tu fechaste o livro que lias, até ao arrastar da tua cadeira quando te preparavas para sair. Do que ficou no meio não resta nada, não restamos nem nós. Não deixo de esperar, no entanto, que lá fora, na rua, sem que nos tivéssemos apercebido disso, um turista qualquer tenha passado, tenha fotografado o café onde estávamos só os dois - e que num armário ou numa gaveta, neste país ou noutro, um negativo nosso apanhe pó.

A cidade e as serras.

Não sei ao certo onde - nem sei sequer se conseguiria descobrir onde, caso tentasse -, mas algures na minha rua, e não muito longe da minha janela, consigo ouvir um grilo pela noite fora.

Our mutual friend.

Quando te abraçaste à minha mãe e lhe disseste que tinhas saudades das férias que passavas ali, na quinta, em miúda - no tempo em que as preocupações se resumiam a chegar a casa à hora do jantar. Quando a tua avó, depois de anos doente, desapareceu e tu choravas. Quando te casaste. Quando o teu filho nasceu. Mostram-me fotografias tuas: estás mais velha, mas és tu. Lembro-me de ti dos Verões, sobretudo das conversas inconsequentes que tínhamos e das voltas de bicicleta que dávamos um pouco por toda a parte, nas imediações da rua onde viviam as nossas avós: da fonte logo após o cemitério, do caminho de terra batida entre ela, o campo de futebol, uma fábrica abandonada, e outra fonte ao fundo de uma encosta. Sei que às vezes perguntas por mim; sei que hoje dei por mim a perguntar-me o que era feito de ti, e por que não falava contigo a sério há tanto tempo.

terça-feira, setembro 23, 2008

Verba aliena.

Podia ter-te dito que ia sentir a tua falta, como se as palavras não nos fossem todas alheias.

Ontem, às 18h25mins.

Lá fora.

Saio da tua casa é meia-noite. Levanto a mão direita e digo-te até amanhã. Encosto-me a um dos lados do elevador, corro os losangos de madeira e metal; desço. Chego à entrada do teu prédio, abro a porta, saio. Na rua nada. É Domingo. Consigo ouvir os meus passos no chão e vejo a minha sombra projectada à direita, nas fachadas dos prédios por que vou passando. O meu andar irregular, arrítmico. Pouco depois estou em casa; ninguém cá. Rodo a chave para a direita quatro vezes e dou-lhe uma meia-volta para entrar. Acendo a luz da entrada, descalço os sapatos, vou até à sala e acendo outra luz; outra na sala ao lado dessa; outra no quarto. Arrumo os sapatos aos pés da cama, volto à sala, ligo a televisão. Quando dou por mim são quatro da manhã. Nos andares acima do meu nenhum som; no meu apenas o murmurar eléctrico das lâmpadas e da televisão a que baixei o volume, para que vê-la se torne um acto divinatório. Talvez faça café daqui a pouco; talvez chá. É provável que passe a noite em branco, a ler ou a ouvir música; a reparar nos barulhos que - lá fora e mais tarde - começam a encher as traseiras do prédio, voltadas para outras traseiras de outros prédios desta rua e da rua atrás desta: o som de loiça a ser tirada dos armários para o pequeno-almoço, janelas que se abrem, estores que se enrolam neles mesmos, um cão a ladrar numa varanda, o estalo de uma toalha que alguém sacode.

Comentário desnecessário (72).





















































[ Fotogramas de My Life without Me. ]

quinta-feira, setembro 18, 2008

Náufrago.

Podia ter-te amado pela forma como mexias o café naquela tarde, ou pela forma como sorrias com o sol por trás. Podia ter amado a maneira como usavas o relógio no pulso oposto ao meu, ou talvez o barulho dos teus passos na gravilha a caminho do carro. Podia ter amado tanta coisa em ti: a tua figura à espera de um semáforo indeciso e demorado; a forma como subiste os degraus daquela igreja para ver a que horas abria; os planos que fazíamos e a tua maneira de dizer "nós" com a convicção de que nenhum outro pronome se nos aplicava. Podia e amei-te: em silêncio; por escrito; pondo mensagens em garrafas que não atirei ao mar, como náufrago em ilha remota.

Self-portrait Thursday.

Duelo.

Tu de um lado da praça, eu do outro, e a nossa velhice ao meio - os anos de que nada sabemos, as pessoas com quem estivemos, as companhias que mantivemos, a vida que levámos connosco ao partir.

Nada de novo.

Ligas-me e pedes-me uma opinião sobre qualquer coisa. Dou-ta. Descubro, pouco depois e pelo teu silêncio, que não era a minha opinião que querias - apenas a confirmação daquilo que achavas. E quando dou por mim quase a dizer-te

- Até parece que não me conheces

interrompo-me e lembro-me de que és tu; de que aqui, nisto, na tua reacção tão igual a ti mesma, não há nada de novo. Até parece que não te conheço.

A história toda.

The half-stories haunted me. I wanted more of them.
Half-stories? you said. Is that what you think?
It was March and still cold, though right now down in the garden the crocuses were shivering under a clear and starry sky and in a few hours the dead tree behind the houses would be a tree of birds, rising and settling and calling.
Half-stories, you said. Well, that's fine. No, it's absolutely fine. No, I'm not upset. No, but I'm not telling you the next story. You can tell the next story. The whole story. A proper story. Come on. I'm waiting.


[ Ali Smith: "A Story of Love." Other Stories and Other Stories. ]

terça-feira, setembro 16, 2008

Noites (5).

Levanto-me do sofá, deixo o livro aberto no lugar ao lado, vou buscar uma camisola ao quarto. Volto à sala, mas continuo com frio. Enfio o iPod no bolso das calças e vou até à cozinha: tiro uma chávena, uma saqueta de chá, ponho água a aquecer, verto-a, e espero que fique pronto ao som de "Top ranking", dos Blonde Redhead, e de "Prime mover", de Joan As Police Woman. O meu pé direito dança.

Movies of myself.

João, Natal 87.

As imagens têm vinte e um anos. Eu tinha sete. Estou à mesa a almoçar contrariado. A minha mãe está sentada à minha esquerda. A Bia aparece no lado direito do ecrã. Olha para mim, mas quem vê primeiro, sentado no meu lugar, é o meu pai, que conheceu desde pequeno. Uma ternura momentânea invade-a e sorri. Era amiga da família e costureira de serviço. Perante o alheamento da minha avó paterna - demasiado ocupada com os seus romances camilianos -, foi a Bia a minha avó: quem aos fins-de-semana me lia histórias; quem dava comigo voltas concêntricas pelo jardim em torno da casa; quem me cosia bolsas de tecido com padrões coloridos para guardar coisas, com a inicial do meu nome cerzida a linha vermelha por cima do fecho. Tenho muitas saudades da Bia. Quando o filme acaba, ela pousa os óculos, levanta-se, sai da mesa onde entretanto se tinha sentado a ler. A cassete principia uma chuva cinzenta e preta. Eu estou deste lado do ecrã, com os pulmões pequenos do choro e a cara molhada.

Literatura Portuguesa VI.

Só mais tarde me apercebi de que a resposta que dei na frequência da cadeira de Literatura Portuguesa VI não era sobre O Ano da Morte de Ricardo Reis - era sobre mim.

terça-feira, setembro 09, 2008

Proximidade.

Nos concertos a que vou, gosto de ficar sentado não muito longe do palco mas também não muito perto. Há qualquer coisa assustadora em poder descobrir, por proximidade apenas, que os meus santos têm pés de barro.

Outono.

Setembro.

No quarto, à esquerda do computador, está acesa uma vela. Os contornos das coisas em cima da secretária tremeluzem na parede à frente; as minhas mãos, projectadas na parede à direita, escrevem num teclado de sombra. A calma de Agosto sobreviveu ainda durante a primeira semana de Setembro. É Domingo. O movimento aumentou na rua e no prédio - subidas e descidas de escadas, malas cujos contornos rectangulares adivinhamos pousados no patamar, a porta que se abre e fecha. Há um comboio que passa; um avião quase simultâneo. Levanto-me, vou à cozinha buscar um copo de água, oiço pela chaminé o borbulhar disforme das vozes dos vizinhos regressados de férias. O som de pessoas e coisas a voltarem ao andamento costumeiro quebra o silêncio. Escrevo: as palavras no ecrã como um espantalho - como crivo entre mim e os dias.

A mudança.

Estava a preparar-me para escrever um texto sobre a tua mudança de casa: sobre como foi difícil pegar em cinco anos de vida, pô-los em caixas e sacos, levá-los do sítio onde moraste para o sítio onde irás morar agora. Mas este é um capítulo novo na tua vida. Resolvo-me a não o manchar com um texto meu que te vampirize a experiência. Vais ser feliz nesta nova casa: tanto quanto ou mais do que foste na tua anterior. Se tiver sorte, hei-de estar aqui: para te ver sorrir e sorrir contigo, para te aturar as bebedeiras e tu as minhas; para os momentos em que tudo cai por terra e sacudir o pó da roupa custa. É que, sabes, com um amigo como tu ao lado a vida de repente não pesa.

Aimee.

Oiço-a desde 1998. Tenho os álbuns dela na estante atrás de mim. Bachelor No. 2 entranhou-se; Lost in Space foi tão ouvido que tenho medo de que o CD se desintegre; The Forgotten Arm foi uma surpresa e há músicas nele que foram tocadas no iPod um número de vezes quase alarmante - digo o mesmo de @#%&*! Smilers. Quando veio cá no ano passado, em Julho, perdi-a. Este ano não repito o erro: os bilhetes estão comprados. Dia 18 de Outubro, pelas 21h, no Coliseu. Lado par da 1ª plateia. Estou lá.

Lost in translation, literally.

O tradutor do quinto episódio da quarta série de The L Word, que passou na madrugada de Sábado no Fox Life, deve ter fumado ou bebido qualquer coisa antes de começar o trabalho. Possessão demoníaca é outra explicação possível. Criatividade, no entanto, não lhe falta. Começamos pela gastronomia: uma cob salad é uma "salada de Cobro" (com maiúscula e tudo). A revista The New Yorker, aparentemente, chama-se "Nem Yale" em português. E isto para não falar dos nomes próprios que, quando não mal transcritos, são traduzidos. Escapa-me a razão; ao "tradutor" creio que também. Alguns exemplos incluem a passagem de Hazel a Gazela; de Angus a Angras; de Elise a Alasse; de Brooke a Bronze; de Jenny Schecter a - I kid you not - Jejuns Schedule. Geografia também não escapa: L.A. (Los Angeles) fica traduzido como LÁ (sim, com acento); Van Nuys tem o seu magnífico equivalente em Vau Nuas. E no domínio da zoologia: esqueci-me de mencionar que um manatee afinal é um "mandarim"? Mal posso esperar pelo próximo episódio.

Manhã (1).