terça-feira, agosto 26, 2008

Arquivo.

Teríamos creio que dezassete anos e andávamos por Amesterdão. Começávamos o dia em Leidseplein e partíamos para o resto da cidade. Comíamos mal ou mal comíamos. Metíamo-nos por ruas estreitas e por bairros onde quase nos perdíamos. Lembras-te do concerto de órgão na Nieuwe Kerk? Das noites em claro? Dos pequenos-almoços tomados no Café Vertigo, em Vondelpark? Dos dias passados a rir por causa da cafeína a mais e da falta de descanso? Encontrei as fotografias no outro dia. Tu sorris, eu também. Tu usavas óculos, eu ainda não tinha deixado crescer a barba. Estamos felizes e nada nelas nos diz que, passados dez anos sobre o premir do botão da máquina e o instante de sorrir, não tornaríamos a falar.

Pausa.

Iniciação à descrença.

O primeiro contacto que tive com a ironia foi aos onze anos. Num teste de Português, o texto descrevia a vida (ou, antes, a falta dela) de uma mulher chamada Laura e a inactividade / inutilidade de que os seus dias se encontravam repletos. O tom não sei se era ou não subtil; suspeito que, nessa idade, me passassem ao lado as subtilezas. Como tal, desde a primeira linha do texto até à última, a minha interpretação não foi outra que não a de alguém que não estava habituado a ser traído por - ou a desconfiar de - quem escreve. Aprendi a lição rapidamente e passei a suspeitar do que leio e mais ainda daquilo que escrevo. Tenho a agradecer ao meu professor de Português pela minha iniciação à descrença.

Material (2).

Perto do final de Margot at the Wedding, de Noah Baumbach, Pauline acusa Margot de ser responsável pela ruptura do seu primeiro casamento por ter aproveitado para a escrita, sem qualquer corte ou adaptação, episódios que presenciara ou que lhe tinham sido contados. A História repete-se: um segundo casamento que ainda não aconteceu mas já em vias de falhar, e cujos problemas começaram a emergir a partir da chegada da irmã. Margot está sentada em cima da cama, com as pernas cruzadas, a escrever. Pauline arranca-lhe o caderno das mãos.

PAULINE: You cannot write about this. You can't have it.

MARGOT: That wasn't about you.

PAULINE: You already took a part of my life, that story you wrote about Lenny and me.

MARGOT: It wasn't about you.

PAULINE: It ruined our marriage.

MARGOT: Oh, God.

PAULINE: You can't have any more.

Material (1).

R. diz-me que a razão pela qual se mantém no seu relacionamento actual é o facto de as discussões aí existentes - frequentes e verbosas - lhe proporcionarem material para a escrita.

Corda.

quarta-feira, agosto 20, 2008

Noites (4).

Há um resto de café na cafeteira em cima da bancada da cozinha. Abro o armário, tiro uma chávena, encho-a até meio. Aqueço. Levo a chávena para o sofá onde tenho aberto o livro que estou a ler. No iPod e em repeat: Wasps' Nests, de The 6ths. Duas da manhã. Adormeço daí a quatro horas, e apenas porque me obrigo a isso.

Vermelho (3).

Sapateado.

Toda a transparência surpreende a princípio. Reparou primeiro que não olhavam para ele, mas através dele. A retina capturava o que supunha ser essencial e o que sobrava ficava à margem, numa caixa com uma etiqueta onde se podia ler "Outros". Sorria demasiado, talvez fosse esse o problema. Sorria tanto que passava por parvo. Não o fazia por obrigação: achava genuinamente engraçadas muitas das coisas que lhe diziam e mostravam. Mas as pessoas ficavam-se pelo sorriso, pelo jogo de palavras inteligente, sem chegarem a perceber que aquilo era sapateado do mais preciso que alguma vez fizera: um passo em falso, caía, não se tornava a levantar.

Outro.

As for me, I am a watercolor.
I wash off.


[ Anne Sexton: "For My Lover, Returning to His Wife." Love Poems. ]

Delével.

Cada vez mais se apercebia de que não manchava mãos, bocas, caras, dedos, memórias - de que saía facilmente, sem grande esforço de braço.

quarta-feira, agosto 13, 2008

Diving headfirst.

Com a cabeça quase submersa, olhos fitos no tecto da minha casa de banho, oiço muito ao longe o terceiro contraponto de Die Kunst der Fuge e um barulho como o de um comboio cujos solavancos rítmicos aturdem os carris por onde passa - o meu coração. Escondido e audível agora que tenho os ouvidos cheios de água. Além dele, pouco: o enche-esvazia sussurrado da minha respiração, passos no andar de cima, um telefone a tocar algures no apartamento. Talvez as horas passem e seja noite. O pó pode acumular-se nos móveis, a loiça amontoar-se na bancada da cozinha, alguém bater à porta. O telefone que há pouco tocava extinguiu-se, e com ele os passos na casa acima da minha.

Mug shot.

Monólogo interior.

Uma resposta a uma pergunta é uma resposta a uma pergunta: seja dada ou não; seja a pergunta feita ou não.

Noites (3).

Há um café que cá fora só tem uma mesa. Uma mesa com quatro cadeiras. Em cima da mesa um cinzeiro. Vêem-se telhados dali e gatos pretos esguios a saltar muros, a trepar árvores. Em cima da mesa duas chávenas com café quente dentro, uma com chá. Três copos a um terço com uma bebida açucarada. Nada acontece que não o ar frio da noite a arrefecer-nos os braços. Pagamos e saímos. Subimos e descemos ruas até voltarmos ao mesmo sítio. Sentamo-nos mais um pouco, bebemos mais um pouco. Deixamo-nos ficar até tarde.

Might.

My advice to writers just starting out? Don't use semicolons! They are transvestite hermaphrodites, representing exactly nothing. All they do is suggest you might have gone to college.

[ Kurt Vonnegut: Armageddon in Retrospect. ]

segunda-feira, agosto 04, 2008

Noites (2).

Três e quarenta e cinco da manhã na A5. Duas faixas de rodagem suprimidas por cones cor-de-laranja paralelos e contínuos ao longo de quatro quilómetros. Olhos bem abertos. O rádio na Radar. Os meus lábios sabem a café.

Comentário desnecessário (71).

Ficar.

Há no início de todas as coisas um desastre. O nosso, por exemplo, foi termo-nos apercebido de que não chegávamos - de que eram precisas mais e mais pessoas entre nós para nos conseguirmos sobreviver. Assim começou o tempo dos nossos escassos encontros. Saías do apartamento antes de mim, ou saía eu. Vestia-me à pressa, tu também, em dias e horas assíncronos. Trabalhávamos, voltávamos a casa, dávamos o beijo mecânico do jantar e comíamos com a televisão ligada num canal qualquer. Adormecíamos. Havia noites em que não trocávamos uma palavra e não fazia mal porque não havia muito que tivéssemos a dizer um ao outro - ou, havendo, era preferível que ficasse por dizer. Quando não dormíamos em casa, avisávamos antes. Fingíamos reuniões, jantares, saídas com amigos. Dormíamos noutras casas, noutras camas, com outras pessoas. E quando entrávamos no nosso prédio, passado um dia ou passados muitos, respirávamos fundo antes de subirmos a escada e metermos a chave à porta. Vivemos assim quarenta anos porque não sabíamos como viver de outra forma: sem nos odiarmos um ao outro, e a nós mesmos por nos termos deixado ficar.