quinta-feira, setembro 17, 2009

Le pluriel.

Ele usa barba. É mais alto, está atrás dela na fotografia, olha para a objectiva. Ela está à frente. Veste um vestido claro com uma faixa negra, segura um copo de vinho na mão direita, sorri também para a máquina. Nem o sorriso dela - nem o dele - são iguais aos sorrisos dentados dos demais: há apenas um leve premir de lábios que lhe confirma a existência, um erguer discreto dos extremos da boca. Perto do canto inferior direito da fotografia, a mão dela, tremida, aberta, paira por cima da perna dele; a mão dele, semicerrada, está nem a um centímetro da dela. O que está nesta fotografia não é ela nem ele - é o plural.

Comentário desnecessário (77).

No seu lugar.

Arrumar os afectos no seu nicho empoeirado; arrumá-los não de vez, apenas até outro dia. Esquecer-me deles lá, e ir vivendo como se dormisse. Tropeçar na rua, ferir joelhos, ver caras e corações, e estar noutro sítio ao mesmo tempo - estar noutro sítio, como sempre. No seu lugar - no vão dos afectos arrumados sem ser de vez, mas esquecidos até outro dia -, nada: nenhuma memória coagulada, ou sequer um papel carcomido que me lembre do que me vou esquecendo vezes repetidas.

À procura de um texto autobiográfico (46).

Final Notations

it will not be simple, it will not be long
it will take little time, it will take all your thought
it will take all your heart, it will take all your breath
it will be short, it will not be simple

it will touch through your ribs, it will take all your heart
it will not be long, it will occupy your thought
as a city is occupied, as a bed is occupied
it will take all your flesh, it will not be simple

You are coming into us who cannot withstand you
you are coming into us who never wanted to withstand you
you are taking parts of us into places never planned
you are going far away with pieces of our lives

it will be short, it will take all your breath
it will not be simple, it will become your will


[ Adrienne Rich: An Atlas of the Difficult World. ]

A vidinha.

Um cepticismo que traz consigo um cansaço enorme, que vais fazendo por esgrimir tanto quanto podes. Às vezes ganhas tu; às vezes ganha ele; às vezes dão os dois o jogo por perdido. É a vida, idiota. Não - é a vidinha.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Fim de tarde (2).

Há as tardes que se alongam. Há o começo da noite no sofá da sala, com a janela aberta sobre o pátio. Os braços da buganvília perdem-se aos poucos no escuro; acima, a luz coada de uma lua oculta e muito branca. Nas horas anteriores e nas seguintes, ouve-se Keith Jarrett, conversa-se, bebe-se limoncino com gelo, marcam-se os tempos com o pé direito.

Jarrett.

Livro de caras.

Num aviso do Facebook, leio "There was an error understanding your request". Penso para mim mesmo "Tell me something I don't know".

Stay tuned.

I must confess that, having grown somewhat accustomed to it, I now find this charming idiosyncrasy entirely worthy of the remarkable instrument which produced it. [...] However, in our best of all worlds, we would hope to preserve the present sound while reducing the hiccup effect; so, as the television card says on those occasions when sound and video portions go their separate ways - 'STAY TUNED: WE'RE FIXING IT'.

[ Glenn Gould, sobre o seu Steinway de estimação, o CD 318. ]