sexta-feira, março 31, 2006

Ficção (35).

São três da manhã e percorro as ruas por onde tu passaste esperando encontrar-te a cada passo dado. Procuro a tua cara nos reflexos funestos das montras com manequins vestidos dentro; o teu cheiro na casca das árvores no meio da avenida. Chamo o teu nome, a cada vez resignando-me à tua réplica inexistente.

Para cima, para cima.

Antes de tornar a encher a chávena.

Tenho andado sem saber o que escrever o que, por si, não é grande novidade. Tenho bebido quantidades avassaladoras de chá bem forte sem razão especial que o justifique. Fui ontem ao cinema com o J. ver o Breakfast on Pluto - filme óptimo; do princípio ao fim e passando pelo meio; óptimo. O N. vai para Nova Iorque daqui a pouco mais de uma semana; aproveito o post para lhe desejar boa viagem, sabendo bem que o farei pessoalmente mais perto da data da partida. O "Heartburn", do Rufus Wainwright (incluído em The McGarrigle Hour), está a tornar-se uma presença quase contínua na minha aparelhagem. Vou fazer mais uma chávena de café e obrigar-me a ficar acordado pela madrugada fora.

quinta-feira, março 23, 2006

Esforço para uma definição de amor.

Um casal de velhos. Ela traz na mão um ramo de flores que ele lhe deu; ele traz na cara o mesmo sorriso de quando a viu há cinquenta anos, pela primeira vez, no Jardim Botânico.

Comentário desnecessário (49).

quarta-feira, março 22, 2006

A lucidez difícil de quem escreve.

Passo os olhos por dois ou três textos que podia pôr aqui hoje, alguns escritos nesta semana; outros há uns dois anos. Guardo-os para outra altura: são demasiado deprimentes e / ou problemáticos. O dia foi bom. Fui até Oeiras e aproveitei para fazer umas compras necessárias. A caminho do Alto da Barra dei por mim longe dali. Parei para olhar para o mar e o frio entrava-me nas mãos. Fiquei uns minutos assim. Passei pelos sítios por onde dava voltas de carro quando ali vivi. Não tive saudades. O reconhecimento dos lugares, do casario pelo qual os anos passaram como por mim. Estou mais velho. Uso uma barba cheia que, dizem-me, me envelhece. Menos cabelo. Cada vez menos. Na televisão aproveito para rever o All I Want, do Rufus Wainwright. Reparo no pé descalço dele enquanto toca

(uma meia cinzenta)

e fascino-me. Nunca tinha dado por isso antes. A T. escreve de pernas cruzadas no sofá. Na sala, o aquecedor murmura calores. E eu termino este texto e passo ao seguinte.

sexta-feira, março 17, 2006

Milagres da tecnologia dos anos oitenta.

Quando era pequeno - e ia para a praia -, tinha a ideia de que controlava o tempo através de uma lata de creme Nivea. Virava a tampa para a esquerda e para a direita e afinava a temperatura, desviava nuvens, fazia o sol aparecer, mandava chuva. Eu, sentado na areia, embrulhado na toalha, a programar tempestades e nevões. E tudo através de um pequeno recipiente azul com letras brancas.

Aqui passa gente todos os dias.

À procura de um texto autobiográfico (21).

Mudo de opinião continuamente
espero o teu regresso pela tarde
e cuidadosamente velo a minha cólera


[ Ruy Belo: "Os Balcões Sucessivos sobre o Rio". Despeço-me da Terra da Alegria. ]

Ficção (34).

Sem ouvires o ronronar dos carros ou o sopro dos aviões; sem te aperceberes sequer da ambulância que passa, da conversa ruidosa dos estudantes perto de ti. Esperas, paciente, que ele desça e te salve.

Favoritismos.

A falta de criatividade é uma coisa séria.

Estou há quarenta minutos com o cursor a piscar numa página em branco. Quarenta minutos a dar voltas à cabeça e a forçar-me a cuspir umas quantas palavras a ver se as consigo transformar numa coisa minimamente legível. Tiro a música. Desligo o aquecedor. Tento ficar sem barulho à volta porque me custa escrever de outra forma. Faço mais uma chávena de café? Sim. É já. Ontem fui um bocado ao Bairro Alto com a T., o P. e a S. - companhia e conversa muito agradável. Mais agradável ainda depois de uma tosta de queijo e de um gin tónico no Páginas Tantas. Gosto muito daquele sítio; vou lá há anos. Zapping. Nada de jeito.

quarta-feira, março 08, 2006

Análise textual.

Quando todos os textos são autobiográficos, nenhum texto o é. E vice-versa.

Cara de espanto.

Sobre os últimos dez minutos dos Óscares.

Já sei que sou tendencioso, mas é a última vez que fico acordado até às quatro e meia à espera de ver quem ganha na categoria de "Melhor Filme" para depois ganhar "outro". Dito isto, para o ano lá estarei no sofá até às tantas, com um café ao lado, a rosnar pragas sicilianas aos candidatos menos dilectos.

Reconhecimento auditivo.

Sempre que decido ouvir gravações feitas por mim de peças que toquei ou compus, tenho sempre dificuldade em perceber que sou eu ao teclado. Não me acho capaz "daquilo". Depois aparece sempre o barulho de um pousar de chávena, da fechadura da casa, de uma interrupção feita por alguém que não sabia que o MiniDisc estava a gravar. Sei que sou eu a tocar porque consigo subtrair a minha respiração; porque sinto o pé a pressionar o pedal nos momentos que me assinalei. Quando olho para a direita de onde estou, atrás de uma porta com vidros, está o piano. Se me levantar agora e me sentar no banco, quieto, vou acordá-lo. Sei que ele não se importa porque o conheço.

O meu gene Martha Stewart.

Seis linhas antes de adormecer.

São cinco da manhã e estou a olhar para o poster do Keith Haring que tenho em frente à cama. Na casa o som de quem dorme. Duas figuras

(uma amarela, outra laranja)

abraçam-se sobre um fundo roxo e um chão azul turquesa. À volta, não dois contornos. Um só. Foi o primeiro quadro que comprei para esta casa. Adormeço.