Não consigo escrever com barulho ou com música. Ou, vá, consigo mas muito raramente. O cérebro atafulha-se e ou ouve o que está a passar na sala aqui ao lado ou então tenta montar e desmontar frases, nem sempre com grande sucesso. Agora, por exemplo, oiço a voz da Chan Marshall a cantar "Where is my love" (
The Greatest); e noto - já tinha pensado nisto, mas nunca me tinha dado para anotar - que é uma voz que quase desiste de si. Deu-me para me lembrar do primeiro ano da minha licenciatura, do cumprimento meticuloso do meu horário (leia-se "nada de baldas") de que padecia na altura; de chegar às sete e meia da manhã à faculdade e de me enfiar, até às oito, num dos auditórios a ler ou a tocar piano; do suicídio absolutamente imprevisto da C. no segundo ano; e do meu cansaço quase constante a partir também desse ano. Oiço o sinal de mensagem do telemóvel. Recebo uma fotografia. Sorrio a sério. E lembro-me, sem que o consiga evitar, das palavras da minha mãe quando era miúdo
- Pronto, já passou o mau tempo
e saía, a poder de doses cavalares de açúcar, de hipoglicémias que me deixavam exausto. A. Minha. Mãe. A quem o "mãe" foi carcomendo o nome sonoro que escolheu, repudiando uma geração inteira de Marias. A. Minha. Mãe. Talvez a pessoa mais corajosa que conheço. E eu. Nascido numa família na qual sobrevivem dois espécimes de género masculino (três, se me incluir); rodeado por gente cujas histórias me fascinam e a quem amo, ainda que às vezes muito caladamente. E cheio de medo de morrer sem fazer tudo o que quero.