sexta-feira, novembro 30, 2007

Prestidigitação.

Preciso de dois anéis na minha mão, um bocado de sangue e um pano escarlate. Com isto iludo o mundo e a mim no espelho: com uma mão que não carrega nada, mas finge; com o passo leve que não dou; com a voz baixa que mantenho.

Comentário desnecessário (58).

À procura de um texto autobiográfico (30).

There was never a time when I did not make sentences in order to make those things that I had experienced real. I also made up sentences to describe imagined worlds and alternative universes.

[ Gore Vidal: The City and the Pillar. ]

Próximos livros (1).

Por esta ordem e sem ideia de quando terminarei:

The City and the Pillar (Gore Vidal)
Point to Point Navigation (Gore Vidal)
Middlemarch (George Eliot)

Em simultâneo:

American Elf: the Collected Sketchbook Diaries of James Kochalka, vols. 1 and 2 (James Kochalka)

Sugar rush.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Entre nós a cidade.

A cidade dividiu-se: eu fiquei de um lado e nada do outro. Entre nós uma cidade com uma espessa faixa ao meio, como nunca antes.

Romã.

O João e a Maria.

Sempre achei piada ao protagonismo que "o João" e "a Maria" têm em muita da minha (e não só minha) exemplificação. Se calhar é por me chamar João. Ontem estava a passar os olhos por dois pontos de um capítulo que escrevi e apercebi-me de que a vida deles é, sem dúvida, muito rica; tenho a certeza de que, sendo amigos ou casados ou o que for, são felizes juntos.

Dos meus exemplos ficamos assim a saber que o João fuma (não devia) e que comprou os livros ao alfarrabista; que pôs as compras na cozinha e que comeu o bolo na pastelaria. A Maria, por sua vez, vendeu o carro ao João recentemente e disse-lhe há pouco para ligar mais tarde. Está em Roma, mas volta amanhã. Tem casa no Algarve. O João vai para Lisboa (faz ele muito bem). Na semana passada, a Maria dançou durante horas e depois dormiu a manhã inteira; o João pintou a sala. Consta que o João faz uns bolos óptimos; a Maria, há quem diga, sabe tudo. A vida destes dois é tão emocionante que envereda pelo oculto e pelo vandalismo, mas só em língua inglesa: Mary killed the werewolf with a silver bullet; John broke the windowpane with a stone.

Mas nem tudo é calmo. No jornal, um dia, apareceu Mary murdered John with a dagger. Enquanto tomavam o pequeno-almoço, a Maria vira-se para o João com aquela cara que só a Maria sabe fazer e pergunta-lhe

- Olha lá, mas eu assassinei-te ontem com um punhal?

O João responde-lhe que, se sim, não tinha dado por nada. Há por vezes algumas discrepâncias na simultaneidade da sua vida: enquanto o João come uma maçã, a Maria escova os dentes; o João tem uma dor de cabeça, a Maria sabe japonês; a Maria escreveu um romance, o João (um comprovado underachiever) fez uma tarte.

Sim, são felizes juntos.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Frio.

O termómetro marcava treze graus centígrados. Treze graus lá fora, na minha rua. Finalmente.

Listening sessions (6).

Página 161.

Concrete barracks and earthworks 40 feet high towered in the middle distance as the sound beyond them, the sound of a waterfall, grew louder, calling from his memory.

[ Thomas Pynchon: Gravity's Rainbow. ]

terça-feira, novembro 13, 2007

Status report (15).

A preparar-me para acabar de ler o Therapy, do David Lodge, que ficou interrompido durante uns tempos. Depois: rever ou o Lost in Translation ou o The Life Aquatic with Steve Zissou.

Comentário desnecessário (57).

Permanências.

No laughs and no jokes and no thoughts.
No words and no desires - none of that any more.

None of that any more and all of it still.
All of it still and more and more of it every day.


[ Hugo Williams: "Sweet Nothings." Billy's Rain. ]

Café.

Gosto muito de café. Não me tinha apercebido, contudo, de quanta importância lhe dou até um e-mail da F. me ter chamado a atenção para isso. A palavra café aparece, no Maiúsculas, em cinquenta e nove posts (sessenta, se contarmos este); coffee também tem direito a duas ocorrências. Não me lembro ao certo do primeiro café que tomei: suspeito que tenha sido ou no primeiro ano da Licenciatura (1998-9) ou, antes disso, em data imprecisa - em casa do meu tio (depois de almoço) ou da minha avó materna (ao pequeno-almoço). O sabor amargo do líquido, equilibrado na altura com doses maciças de adoçante,

(algo que hoje não faço - bebo-o ou pouco doce ou sem nada)

viciou-me. E depois a electricidade que me causa, a coffee buzz de duas horas de que já falei; a produtividade que possibilita; o sorriso rasgado que, na dose certa, me consegue induzir. Gosto de café ao acordar, a ler, a dar aulas de ou a estudar piano, a ver televisão, a escrever, a falar com amigos, a tentar decidir o que fazer de alguns dos meus dias, depois de sair do cinema, de dia ou de noite. Gosto dele mais forte e mais fraco, frio e quente, com limão, de filtro, de balão, espresso ou instantâneo.

Gosto muito de café.

Cantos (2).

Ficção (47).

No chão ficaram as minhas mãos quietas, o lugar dos teus pés e um resto de sangue; fiquei eu a ver-te ir. O ar cheirava a borracha queimada.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Estar lá.

Falava no outro dia com o X. que me dizia que as paixões que tinha, musicalmente falando, eram poucas ou inexistentes. Isto a propósito do meu entusiasmo relativamente ao concerto de Rufus Wainwright, no qual estive ontem. Foram quase três horas de espectáculo, na presença de uma voz e de um talento musical estrondosos, de uma banda versátil e bem disposta. Saí do concerto com a mesma sensação que da primeira vez que o vi em Portugal: uma vontade de mudar de vida, de fazer mais de mim; se calhar, uma vontade de reduzir a pó o meu pouco relevante passado. O Rufus faz-nos isso, no meio de tantas outras coisas e sem que nos apercebamos.

Hoje, ao acordar, senti-me vazio - corpo e cabeça desmanchados, como quando bebo em demasia. O concerto tinha passado. Não sei quando tornará a vir cá. E é exactamente o que disse à T. ontem à saída do Coliseu: que, se pudesse e havendo concerto dele no dia seguinte, tornaria a ir. Perpetuum mobile.

Ainda bem que ainda há quem me faça sentir assim - acordado, vivo.

sexta-feira, novembro 02, 2007

Status report (14).

A beber café forte e a tentar ganhar coragem para ler dois livros - um dos quais ainda não comprei - até segunda-feira.

Comentário desnecessário (56).

A memória dos sítios.

A S. diz-me que é "muito triste perder a memória dos sítios". Vem isto a propósito de lhe ter dito que não vou aos arredores de Marvão, terra da minha avó, desde que ela morreu - há coisa de cinco anos. A casa dela era a casa em que se passavam os Natais e os Verões, pelo menos até aos dezassete ou dezoito anos, idade em que adquiri o gosto por ficar sozinho em Lisboa o mais que podia.

Quando a minha avó morreu, eu estava a estudar para as duas cadeiras que deixara para Dezembro e que ditariam a conclusão da Licenciatura. Foi também a altura em que o meu primeiro relacionamento "sério" terminou. Lembro-me de não ter conseguido comer

(bebia apenas água com açúcar)

durante quase uma semana; lembro-me da primeira coisa que comi depois disso; e lembro-me de ter sentido o primeiro embate da morte da minha avó Joaquina apenas dois meses passados sobre ela. Um dia, sei-o bem, hei-de voltar ao sopé de Marvão. Hei-de percorrer a estrada que, lateralmente, liga a casa da minha avó

(e as casas que lhe estão próximas)

ao cemitério e a uma fonte; hei-de abrir o portão pesado e o portão que fica metros à frente e sentar-me em frente à campa dela e do meu avô. Mas, feito isto, a minha avó estará morta: deixarei de a ver como vejo, risonha, no último almoço que tive com ela em Agosto desse ano; ou ao fundo da escada - da qual tantas vezes temíamos que caísse na sua pressa de abrir a porta quando nos ouvia chegar -, com os olhos chorosos por nos ver voltar a Lisboa no fim das férias. Quer virássemos para cima ou para baixo, ao fundo da rua, a minha avó dizia adeus no torpor gélido da madrugada; acenava-nos até nos perder de vista e por vezes depois disso. Já quase em Portalegre, imaginava-a a tornar às rotinas do seu dia, às dores ocasionais, ainda um pouco amachucada pelas partidas a que nunca se conseguiu acostumar.

Sei que a casa da minha avó já não é a casa da minha avó. Mas a casa da minha avó nunca deixará de ser a casa da minha avó.

Ficção (46).

Aprendi aos poucos a linguagem erma das raízes que ganhei.

Cantos (1).