Húmus.
Quando vejo que as palavras não me servem pego nelas e enterro-as no jardim - ao lado de uma árvore, perto de uma trepadeira, num canteiro -, como a um animal querido que cansado ou doente me deixou.
"So that I may say at all times, even when you do not answer and perhaps hear nothing, something of this is being heard, I am not merely talking to myself [...]." (Samuel Beckett, Happy Days)
Quando vejo que as palavras não me servem pego nelas e enterro-as no jardim - ao lado de uma árvore, perto de uma trepadeira, num canteiro -, como a um animal querido que cansado ou doente me deixou.
Uma coruja que pia, um cão a ladrar, a luz de um semáforo que passa a amarelo. Combinamos sinais e encontramo-nos. Trago na mão um livro de um autor teu conhecido. Tu trazes a tua cara. Usamos óculos escuros, sapatos vermelhos, capa e adaga. Recitamos um trecho do hino do Canadá. Apertamos as mãos secretamente. Às nove em ponto ou à hora do duelo estaremos lá.
Pegámos em nós e metemo-nos num táxi para irmos jantar. Tarde, diga-se de passagem. Eram quase onze e disseste-me que conhecias um restaurante muito bom, para os lados do Chiado, que estava aberto até quase à uma. Comi a salada com Camembert panado; tu comeste o caril de camarão. Sobremesa: um crème brûlée com um aroma quase imperceptível a gengibre. Já bebemos demasiado e sabemo-lo. Mas é como te disse: se tu ficas com a cabeça a andar à roda e eu também, um de nós tem de manter a compostura apesar de termos uma garrafa de Dona Ermelinda na circulação. Subimos até ao Páginas. Gente. Tanta gente até lá. Abrimos caminho; vou olhando para trás a ver se não te perdi. Chegamos e temos lugar. Pedimos um gin tónico, bebemo-lo, ficamos um pouco mais e saímos. No táxi para casa - rápido, curvas apertadas e ultrapassagens interessantes - rimo-nos por causa de umas chamadas de ouvintes para uma rádio qualquer àquela hora. Chego à minha casa. Tu chegas à tua. Caio na minha cama feliz e adormeço. Sei que tu cais também na tua.
outra coisa
Em noite de chuva, aproveito para entrar no comboio com aqueles três irmãos. Faço com eles a viagem a partir da sala aqui de casa, na esperança de chegar a algum sítio, mesmo que seja apenas o lugar de onde parti. Ao meu lado as malas: remédios, camisolas, camisas, casacos, calças, sapatos, um cinto, uma manta de viagem, uns óculos com a graduação errada, um livro. Levo uma fotografia tua dobrada num compartimento da minha carteira. Daqui a hora e meia regresso.
Estive a falar há uns dias do vídeo do Mike Mills para o "My impure hair", dos Blonde Redhead. Além de a música ser de um abandono extraordinário, gosto de muita coisa nele - mas gosto sobretudo da vida a acontecer alheia ao que está a acontecer lá atrás.
O homem que me corta o cabelo corta-me o cabelo há cerca de catorze anos. Vi o dele cair-lhe aos poucos e irreversivelmente; ele vê-me ir ficando sem cabelo também aos poucos. Penso às vezes no que farei quando ele mudar de sítio, se reformar, morrer. Se em velho terei quem me corte o cabelo e me conheça; se terei cabelo para ser cortado. E a resposta a isso é como a resposta que dou a tanta coisa de momento: não sei.
Quando chove e sou apanhado sem guarda-chuva não costumo correr - ando. Mas acho piada a ver as pessoas a correrem para dentro de cafés, debaixo de toldos ou entradas de prédios. Não me desagrada a sensação de chegar encharcado a casa.
Fico com um sorriso de orelha a orelha quando me oferecem livros, sejam eles de autores de que gosto ou de autores que simplesmente não conheço ou de todo ou bem. Este foi-me oferecido pelo N. na terça-feira. Já comecei a lê-lo e aproveito para lhe agradecer livro, dedicatória e ter-me desencaminhado, no melhor sentido possível, das minhas leituras programadas. Obrigado.
Caminho à direita das árvores junto ao rio quando vamos; à esquerda quando regressamos. O vento bate-me na cara. Tenho as mãos frias escondidas dentro do casaco. É de noite e estou feliz.
Todas as histórias que te leram em criança poderiam ensinar-te a lição maldita da persistência, essa coisa quase-nódoa. Mas apenas se bem lidas - com inflexões vocais, expressões faciais e contorções de sobrancelhas. Suspeito que te leram poucas histórias em criança; que tas leram mal, de uma ponta à outra, num só respiro. E que com isso se cortou cerce a tua aprendizagem.
Poetry is no place for a heart that's a whore
Maravilhado com a descoberta tardia da voz da Martha Wainwright a solo e sem conseguir parar de ouvir uma das músicas do álbum homónimo. Para mais informação, ver os primeiros três minutos e quarenta e quatro segundos disto.
Quando em conversa um amigo lhe disse que por vezes achava a sua escrita triste e um pouco áspera, a única resposta que soube dar foi
O que era aquele tango verbal coxo que dançávamos quando eu bebia demais e tu ficavas a ver? A maneira como chegávamos, sempre a falar e entre risos, ao parque de estacionamento perto do Largo do Carmo onde costumávamos deixar o carro? Como se perdeu isso como as chaves ou trocos soltos numa carteira que se deixou de usar?
Andrew Bird numa ponta da casa, janela entreaberta na outra - o frio a entrar, o barulho da chuva, o passar metronómico de um comboio. À direita uma chávena de chá. Na sexta-feira à noite, em sessão dupla aqui por casa, vi o A History of Violence e o Eastern Promises, de David Cronenberg; soube-me bem deitar-me às cinco e pouco. Agora a ouvir a Musica Callada, de Frederic Mompou, tocada por Javier Perianes. Depois: uma volta pelos blogs do costume.
Engraçado que os três álbuns que estive a ouvir ontem tenham todos títulos começados por "L"; antes destes, ouvi cinco começados pela letra "A". A seguir: café e Chopin. Letra "C", portanto.
Serei teu. Serei teu em Carcavelos, onde as avencas proliferam; serei teu em Odeceixe de vez em quando; numa ou noutra noite serei teu no Mosteiro da Batalha e em miradouros arruinados com vista sobre nada; serei teu em fontes cujos nomes apenas os velhos conhecem. Procura-me portanto nos cantos da cidade, nas ruas íngremes e estreitas de pavimento caduco; procura-me nas praças, nos cafés, nas línguas dos outros tão escondidas e irrequietas como gatos. Deixo-te migalhas, pedras e um rasto pequeno de sangue: segue-os e encontra-me.
Todos os dias faço um bailado estranho em que tu não entras e eu só às vezes. Não há movimento inicial - apenas um começo sacudido a meio: quando me debruço sobre a bancada e esbracejo ou quando faço sapateado de costas coladas à parede; quando dobro a roupa, lavo o chão ou finjo importar-me com o si bemol da tua voz. O bailado que faço não é bonito nem feio mas é útil para me manter à tona. E há dias em que me permito o arrojo de um plié cafeinado com a cara molhada e a boca seca. Não me digas que me queres ver dançar porque não queres. Caso queiras, ficas a saber que não há bilhetes: que o espectáculo esgotou quando ainda estava na minha cabeça, de onde nunca chegou a sair.
Morto o marido, torna agora à casa que tinham perto da Azambuja. Abre caminho por entre as ervas que cresceram no pátio; abre a porta. Cumprimentam-na o pó e as coisas de há dois anos nos mesmos sítios de há dois anos. Uma dor no joelho, uma ida ao hospital e, de repente, cancro; de repente o tempo contado; seis meses. Seis meses e o marido
We all recognise that I'm the problem here
Estão escondidas dentro de livros aqui em casa armadilhas: neste caso um cartão de aniversário de há dois anos, cheio do habitual optimismo e com mensagens conciliatórias que não deixam de causar um certo enjoo. Há três semanas deitei fora o convite para o teu casamento; há dois meses apaguei o teu número de telefone. Rasgo agora o teu cartão.