terça-feira, maio 27, 2008

Estilhaços.

Ele levanta-se e vira-lhe as costas. Vira-se novamente e diz-lhe qualquer coisa irrepetível. Abre a porta e sai. Ouve-se o motor da carrinha e o som de pneus a afastarem-se. Do interior da velha casa, ela vê-o partir e pensa que, se no dia seguinte acordar e conseguir olhar marido e filhos nos olhos sem tombar num pranto aberto, a sua vida terá talvez seguido em frente; que terá sobrevivido. Mas o que são aqueles estilhaços que a incomodam quando respira - ali, à altura do seio esquerdo, um pouco para o meio do peito?

Cantos (5).

No final.

No final resta apenas aquela nuvem de fuligem óssea atirada pelos nossos sobreviventes da ponte em que pela primeira vez percebemos que não estávamos sós.

Ficção (54).

Ainda guardo no meu bolso esquerdo o anel que comprámos em Cascais. Está polido de o guardar ali e de o usar às vezes. Quando acontece lembrar-me de ti e de como te subtraíste da minha vida, guardo também no bolso o rancor que te tenho - ao lado do anel com as duas riscas pretas que correm contíguas e que me ajudaste a escolher.

Seis palavras mais uma.

A F. desafiou-me a listar seis palavras que me descrevessem - tarefa difícil. Subverto a resposta com o acrescento de uma sétima palavra, para que o quadro fique mais completo:





Passo a outro e não ao mesmo: Randomsailor, Baggio, M., SGC, Formiga negra e Ana. Quem já tiver respondido pode responder outra vez se quiser.

Status report (27).

A ouvir em repeat o novo álbum da Martha Wainwright e com uma caneca de café acabado de fazer apoiada na minha perna direita. Tenho as mãos quentes.

Catalogação.

Bloom.

Passar a voz ao papel,
Ou do ladrar à rosácea,
Trova, é escrever. Estava
Ele, atónito, não vislumbrando
Como ia tanta palavra
Caber na rosácea.
Era óbvio que uma delas
Serviria de estaca,
E as restantes de rosas
No caule ainda por vir.
Quando a frase rosna,
Não há outro remédio.


[ Maria Gabriela Llansol: O Começo de um Livro É Precioso. ]

terça-feira, maio 20, 2008

Bilhete.

O furo circular neste bilhete significa que andei aqui, neste comboio, hoje - a imitar a vida de antes como se os anos não tivessem passado sobre nós.

Companheiros de viagem.

Cada vez menos.

Quando por acaso lhe perguntaram, em jeito de brincadeira, o que sabia ele da vida, aconteceu-lhe responder

- Muito pouco. Cada vez menos.

Fácil.

Tudo isto é em si mesmo fácil, mas é tão difícil.

[ Herberto Helder: Photomaton & Vox. ]

Ficção (53).

Saí de casa só com o que consegui atirar para dentro de uma mala. Deixei que a porta se fechasse atrás de mim, sem dar volta alguma à chave que te tinha deixado em cima da cama, encerrada num envelope. Imaginava-te no café com os teus amigos; a beberes o teu peso em álcool; a gabares a esposa dedicada que tinhas em casa e a quem um levantar de mão bastava para garantir amor e obediência. E eu a correr para a porta do prédio onde vivíamos, para o carro da Zita que me dizia

- Despacha-te, olha que ele ainda aparece aí!

numa voz assustada de quem pensa que sabe o que foram aqueles anos contigo. Já no carro, olho para o meu braço esquerdo, rente ao peito desde há uma semana. Tiro-lhe as ligaduras. Ainda me dói. Sei que há-de haver um momento em que eu me quebro e tu te deixas; o instante em que no meu braço não restam já as marcas enegrecidas com a forma difusa da tua mão.

Comentário desnecessário (68).

Enlace.

Quase davam as mãos mas o vermelho do semáforo desfez o enlace.

Sexta-feira, às 18h10mins.

Preso no trânsito a caminho da Baixa. Pela janela do carro entra o sol que me bate no lado direito da cara. O sinal passa a verde e a minha caligrafia torna-se sísmica.

Próximos livros (3).

Uma ida à FNAC depois de um workshop de três horas resultou nisto:

Um Bom Homem É Difícil de Encontrar (Flannery O'Connor)
O Espelho Atormentado (Russell Edson)
Vida: Variações (Bénédicte Houart)
Alexandre Bissexto (Armando Silva Carvalho)

No dia seguinte:

Amigo e Amiga - Curso de Silêncio de 2004 (Maria Gabriela Llansol)
O Começo de um Livro É Precioso (Maria Gabriela Llansol)
Os Cantores de Leitura (Maria Gabriela Llansol)

Entreacto.

segunda-feira, maio 12, 2008

Ontem, às 23h02mins.

Ligas-me e eu atendo. Desse lado consigo ouvir os The National a tocar o "Apartment story" na Aula Magna. Deste lado sorrio e fico a ouvi-los de olhos fechados, com o coração a bater mais depressa.

Em escuta.

Jack Whitman.

Gosto da forma como o Jack Whitman, sempre que se fala da sua escrita, remete para o facto de tudo aquilo - desde a história às personagens - ser ficcional. Peter e Francis sabem que o que o irmão escreve é não só biográfico como autobiográfico, mas Jack insiste. No final da viagem, Peter comenta

- I like how mean you are.

a propósito do fim de uma história que Jack acabara de ler e para a qual não havia ainda princípio ou meio. Jack hesita, sorri e com um

- The characters are all... Thanks.

baixa a guarda.

À procura de um texto autobiográfico (37).

Frequência

O teu número de telefone martela-me na cabeça
um ressoar ligeiramente agitado. Está em tudo
o que faço, impõe-se quando leio
enfia-se por baixo das palavras enquanto
escrevo.
        E se o deixar um momento à solta
corre então para o telefone e liga
para que na tua casa vazia ressoe
um som que ninguém ouve. Talvez
uma chávena vibre com ele se o tom
atingir a sua amplitude.
Quando muito estala uma jarra.


[ Judith Herzberg: O Que Resta do Dia. ]

Tabela de dupla entrada.

À mesa dos casados sou solteiro. À mesa dos solteiros fui casado.

Oeste.

Quatro anos.

No resguardo da madrugada, aproveito e escrevo este post para assinalar os quatro anos do Maiúsculas. Com mais ou menos cifra, mais ou menos hermético, uns dias sim, outros não tanto: quatro anos de textos e imagens; de perdidos e achados; de chávenas de café; de leituras, escutas e coisas vistas; de pessoas e personae que tenho ido conhecendo por aqui e às vezes fora daqui e cuja escrita e vida acompanho quase diariamente. Para o ano cá estarei de novo e com gosto - muito, cada vez mais - em ter-vos cá comigo.

terça-feira, maio 06, 2008

Chá forte.

Comecei a ouvir há minutos o The Avalanche, do Sufjan Stevens, e vou para a quarta chávena de chá forte do dia. Quando digo "forte" o que quero dizer é que a cor do chá é saturada, que o líquido é negro como café e tão forte como. Faço-o assim há anos. Esvaziado o bule e enquanto o lavo, gosto de sentir as folhas a escaparem-me por entre os dedos.

Perfil.

Errar (1).

Escrever como quem erra nos dois sentidos.

Ficção (52).

Quantas vezes te terei dito que ficasses. E não apenas que ficasses: umas vezes que ficasses, por favor; outras tantas que ficasses, amor. Habituei-me a não me reconhecer nestas súplicas para que me preenchesses dias, tardes, noites. Habituei-me a não me reconhecer: nos gestos mais pequenos e nos maiores; nos nossos jantares em casa dos teus pais; em todas as vezes que me apresentavas a alguém novo que tinhas conhecido. Quando finalmente me cansei, substituí aquele verbo por outro e disse-te

- Vai.

Tu foste.

À procura de um texto autobiográfico (36).

Pediram tantas vezes que parasse
Assentasse
Que desse tempo ao tempo

Para me tornar cordato, habitável,


[ Armando Silva Carvalho: "És quase a minha casa que se move." O Amante Japonês. ]

Reticente.

Bairro Alto.

A luz bate nas casas desconexas, emudece-lhes as cores.

Idiossincrasia (5).

Herdei um padrão de sono errático do tempo da dissertação: às duas e cinquenta da manhã, hora a que normalmente parava de escrever, deixo de estar sentado no sofá e passo a estar deitado. Acabo por adormecer e acordar, quase sempre, quatro horas mais tarde. Levanto-me, arrasto-me até à cama e adormeço por mais duas horas. Acordo cansado pela segunda vez.

Sunshine.

quinta-feira, maio 01, 2008

Feriado.

Há uma aragem fria que entra pelas frestas do estore aqui do quarto. Estou sentado ao computador, mesmo ao lado da janela, e sinto-a a gelar-me aos poucos a nuca e o braço direito. Levanto-me, vou pôr chá a fazer, volto à cadeira. Lá fora, na rua, nada mexe.

The hills are alive.

Recomendação.

Não devo confundir a tua vida
Com este objecto diário, palco de disfarces consentidos


[ Armando Silva Carvalho: "Quando um carro consome a energia de um homem." O Amante Japonês. ]

Próximos livros (2).

Resultado de uma ida à FNAC e para serem lidos por esta ordem:

O Amante Japonês (Armando Silva Carvalho)
Photomaton & Vox (Herberto Helder)
O Que Resta do Dia (Judith Herzberg)
Persepolis (Marjane Satrapi)