No dia em que acordei quase a chorar por te sentir a falta, a minha casa resolveu poupar-me a isso, distrair-me, ou chorar comigo - não consegui perceber bem qual. Quando me levantei, havia pó suspenso no ar e os meus pés deixavam um rasto escuro no soalho do corredor. À direita, de repente, a sala transformada em cenário de guerra: entulho, gesso, os livros em desalinho, as cadeiras tombadas fora do seu lugar habitual, a mesa coberta de uma poeira branca fina. Nesse dia não tive tempo de chorar; depois de limpo tudo e tratado o caos, não tive força para chorar, para me lembrar das saudades que tinha de ti. Nesse dia e nos seguintes tive a cabeça preenchida e tu não existias. E, acredites ou não, foi a minha casa a salvar-me, ainda que apenas temporariamente. Está tudo mais calmo agora. As coisas vão voltando aos sítios: algumas aos do costume e outras não tanto; outras foram substituídas; outras ainda trocadas, órfãs de lugar onde possam parar e descansar. No meio de tudo isto, acabo por ir lamentando o facto de, ao contrário do tecto de uma sala, um coração não se poder estucar de novo, de ter um esmalte tão fino que se deixa estalar de forma mais ou menos irreparável. Tentas cobrir as falhas com verniz, mas não consegues; mandá-lo arranjar, mas ele persiste na sua calvície metálica. Quando por fim é mais a ferrugem do que o esmalte - sobrando apenas dois ou três pedaços azul-forte de recorte irregular -, resta esperar que alguém queira pegar nele e aceitá-lo. Se ninguém lhe pegar, pega-lhe tu.