terça-feira, novembro 25, 2008

Noites (8).

Passo para o iPod três álbuns do Chet Baker e deixo-me ficar sentado, no meu canto, a ouvi-los. Adormeço no sofá por umas horas e quando acordo são quatro e meia. Os álbuns entretanto terminaram. Pego em mim, desligo uma a uma as luzes da casa, e vou para o quarto; caio em cima da cama e ali fico até acordar com uma luz muito ténue a passar através do estore e das cortinas.

Maki.

Esmalte.

No dia em que acordei quase a chorar por te sentir a falta, a minha casa resolveu poupar-me a isso, distrair-me, ou chorar comigo - não consegui perceber bem qual. Quando me levantei, havia pó suspenso no ar e os meus pés deixavam um rasto escuro no soalho do corredor. À direita, de repente, a sala transformada em cenário de guerra: entulho, gesso, os livros em desalinho, as cadeiras tombadas fora do seu lugar habitual, a mesa coberta de uma poeira branca fina. Nesse dia não tive tempo de chorar; depois de limpo tudo e tratado o caos, não tive força para chorar, para me lembrar das saudades que tinha de ti. Nesse dia e nos seguintes tive a cabeça preenchida e tu não existias. E, acredites ou não, foi a minha casa a salvar-me, ainda que apenas temporariamente. Está tudo mais calmo agora. As coisas vão voltando aos sítios: algumas aos do costume e outras não tanto; outras foram substituídas; outras ainda trocadas, órfãs de lugar onde possam parar e descansar. No meio de tudo isto, acabo por ir lamentando o facto de, ao contrário do tecto de uma sala, um coração não se poder estucar de novo, de ter um esmalte tão fino que se deixa estalar de forma mais ou menos irreparável. Tentas cobrir as falhas com verniz, mas não consegues; mandá-lo arranjar, mas ele persiste na sua calvície metálica. Quando por fim é mais a ferrugem do que o esmalte - sobrando apenas dois ou três pedaços azul-forte de recorte irregular -, resta esperar que alguém queira pegar nele e aceitá-lo. Se ninguém lhe pegar, pega-lhe tu.

No dia seguinte.

Na semana passada tive dois dias da maior tranquilidade: a cabeça limpa sem traço de ti. O choro e a tua memória chegaram no dia seguinte.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Noites (7).

Saio da Cinemateca depois de ter assistido a Le Chaos, de Youssef Chahine. Faço caminho, à conversa com o N., até encontrar táxi - o frio a fazer-me tremer discretamente dentro do casaco demasiado fino. Despedimo-nos. Chego a casa em minutos. Acendo as luzes, como qualquer coisa, ponho chá a fazer. Ligo o computador, abro o ficheiro onde tenho amontoados rascunhos, e anoto duas linhas que me lembram de escrever hoje qualquer coisa sobre a noite de ontem.

Obras (1).

Ficção (60).

Estou certa de que seria feliz com o carteiro, mas não sei de que haveríamos de falar. Talvez passássemos os primeiros tempos juntos calados, e findos nos unisse apenas o silêncio. O primeiro olá talvez fosse gutural e mal articulado; guturais e mal articulados também o primeiro bom dia, boa noite, gosto de ti, que fizeste hoje. Aprenderia a dizer-lhe

- Tem um bom dia, querido

ou um

- Até logo, 'mor

quando ele saísse de manhã para ir trabalhar, com direito à elisão do "a" inicial como simulacro de proximidade. Não sei o que teríamos em comum. Pouco ou nada, é quase certo. Não sei sequer o que me levou a pensar - a estar quase certa - de que seria feliz com o homem que todos os dias me traz as cartas que não recebo. Estar só tem destas coisas, e há dias em que estas coisas pesam mais.

Na dúvida.

Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não


[ Ruy Belo: "Muriel." Todos Os Poemas - III. ]

terça-feira, novembro 18, 2008

Brincar às escondidas.

Os textos que escrevemos são marcos na estrada, cruzes e símbolos vários esgravatados a vermelho num mapa ou na terra. Aprendemos a deixar pistas para que nos encontrem porque tudo o que vamos querendo é ser descobertos, como se não tivéssemos sido capazes de brincar às escondidas desde miúdos. Corremos de uns sítios para os outros; fotografamos as ruas por onde passamos, as cadeiras onde nos sentámos, a parede de encontro à qual demos ou nos foi dado um beijo. Tudo para sermos descobertos: para que nos encontrem e - se tivermos sorte - nos encontrarmos.

Afinação.





Crátilo.

Desde que haja interlocutores, as palavras não hão-de corresponder nunca aos conceitos - as palavras não hão-de corresponder sequer às palavras.

Ficção (59).

Uma coisa que faço muito desde que as coisas acabaram é encolher os ombros. Encolho os ombros por tudo e por nada: quando adormeço no sofá, quando me canso de um CD que estou a ouvir, quando pouso um livro e não o retomo, quando acordo e antes mesmo de começar a pensar. Encolho os ombros e normalmente acrescento um

- Que se lixe

que no fundo nada acrescenta. Isto para não falar de quando deixo cair seja o que for, quando a chávena transborda, quando por acaso queimo o jantar porque perdi a conta ao tempo que faltava para estar pronto. Parece que nas últimas semanas pouco mais tenho feito além de encolher os ombros e dizer

- Que se lixe

na esperança de que as coisas se recomponham, de que tu desfaças o erro; de que isto tenha sido um daqueles sonhos de que acordamos mais cansados do que quando nos deitámos. Se mais nada, esperança de que torne a sentir mais do que apenas o pulsar metronómico do meu coração no seu sítio tão preciso - de que pare finalmente de encolher os ombros, e de proferir a frase-reflexo que acompanha esse movimento.

Proverbial.

Mais uma pedra no charco, mais uma pedra para o barco.

terça-feira, novembro 11, 2008

Worstward ho.

Vamos arrumar os pratos, os copos, os talheres nas caixas de cartão - as molduras, os livros, os CDs e parafernália vária. Vamos cortar a água, o telefone; a luz pouca falta faz às divisões vazias. Mudar-nos para não sei onde para nos esquecermos do que aconteceu; fingir que não continuamos a viver aqui; fechar contas, saldar dívidas; devolver volumes à biblioteca. À frente, o caminho. Atrás, os passos mancos que vamos dando.

Italiano para principiantes.

Shopping and thinking.

Apeteceu-me comprar o DVD do I'm Not There pelo simples facto de o título dizer tanto acerca de como estou de há três semanas para cá.

Noites (6).

É meia-noite e pouco e a casa cheira ao bolo de chocolate que acabou de sair do forno e da forma há minutos. No andar de cima pouco movimento. Na rua, se algum, inaudível: as portadas da janela estão fechadas porque há juntas e frinchas pelas quais o frio vai entrando, invadindo o quarto. Como as janelas deste lado da casa são de outro tempo, perdoa-se-lhes isso. Na sala, a televisão vai fazendo o burburinho imperceptível de sempre, emudecido mais ainda pelo aquecedor sem o qual é impossível passar a noite ali. Esta seria a altura em que saía daqui da cadeira, ia até à cozinha, punha café a fazer. Só que deixei de beber café - assim, de um momento para o outro. Substituí-o por uma infusão de hortelã-pimenta, bebida mais doce do que o costume. Ao meu lado no braço do sofá - ou em cima da secretária, à direita do computador -, a chávena fumega à medida que avanço pela madrugada. Há vezes em que me esqueço dela e quando a descubro está já fria; outras em que se acaba tão depressa que não tem sequer tempo de arrefecer.

Posto de escuta.

Uma lista mais detalhada daquilo que ando a ouvir: aqui.

terça-feira, novembro 04, 2008

Aspecto verbal.

Em termos do aspecto verbal, consigo classificar o que aconteceu ou como um processo culminado, ou como uma culminação. O primeiro lembra-me demasiado do caminho que fizemos até à tua desistência; a segunda insiste em repetir-se e encadear-se, transformando o momento em que desististe num marco quilométrico - escondido na erva alta, e no qual embato a cada vez.

Comentário desnecessário (73).



A cena do crime.

Revisitar a cena do crime é sempre complicado, por muito que a ficcionemos, ou ao crime, ou a ambos; ou à vítima; ou a nós mesmos ali. Um dia o cadáver não está no mesmo sítio: um pouco mais para o lado, o braço esquerdo num ângulo ligeiramente mais recto, os traços grossos de giz à sua volta esborratados por passos descuidados. As provas turvam-se. Pedem-nos pormenores: como aconteceu, porquê, porquê agora, não teria havido outra maneira? A nossa memória das coisas - turvada desde o primeiro momento - de pouco serve ao contexto. Falha-se a condenação, e nesse fracasso condenamo-nos ao que desde o início fizemos: a revisitar a cena do crime, encontrando vezes seguidas um cadáver irresoluto, que se desloca mais para lá ou mais para cá consoante os dias, sem que do crime - um crime duradouro e sustido - reste agora coisa alguma.

À procura de um texto autobiográfico (42).

Como os que chegam

Como os que chegam
Arrastando as sandálias da poeira
De instante nenhum regresso ileso

Pois rendi-me
— indefeso —
A quem nunca me cercou nem me venceu


[ Daniel Faria: Poesia. ]

Ficção (58).

A cama agora parece-me grande em demasia. Afasto cobertores e lençóis. Encontro debaixo das duas almofadas e ao centro do colchão recortes quentes. O meu coração acelera e pensa que voltaste, até cair em si e aperceber-se de que aquele calor é apenas um resto meu; que tu estás longe, e não há volta que possamos dar. Faço a cama. Os lençóis azuis manchados por círculos molhados e mais escuros - mais e menos infrequentes, conforme o soluçar se agrava ou não.