No quadro com uma grande mancha vermelha ao centro há uma pinta de luz que pouco oscila ou nada. À medida que a tarde avança, também a luz desliza pelo quadro, e para fora da mancha vermelha, da moldura, da sala. Ninguém presencia estas entradas em e saídas de cena da luz naquela divisão, mas repetem-se diariamente, com maior ou menor precisão conforme os anos e o vigor das estações. A criada, uma mulher quase tão velha como a casa, vem semanalmente. Encontra sempre sobre os móveis um pó de sete dias, quieto desde a sua última vez ali. Não dá por isso, mas fica muitas vezes parada junto à cómoda com um exército de porta-retratos poeirentos e maciços sobre o tampo de mármore, quase chorosa ante a imagem da sua primeira patroa naquela moradia. Demora na limpeza três horas contadas ao segundo, durante as quais também aspira, encera o chão, e passa em alguns móveis mais caprichosos um pano branco tingido de óleo de cedro. Faz tudo isto sem uma única vez questionar o propósito, e chega a dizer muito baixo, quando termina,
- Está tudo como a patroa gosta.
Sabe que à casa não vem já ninguém que não ela. Quer se aperceba quer não, da família é ela a sobreviva - quem volta ali como a um túmulo, para visitar os que lhe são queridos. Na cozinha, atrás do relógio cujo pêndulo persiste regular semana após semana desde quarenta e cinco, há uma outra moldura; dentro desta, uma fotografia dos então habitantes da casa: à frente, patrões, filhos, dois netos; em fila, atrás, cozinheira,
chauffeur, jardineiro, duas outras criadas. Só muito lá atrás, e a fugir do enquadramento, ela: que por modéstia não queria aparecer na fotografia, e que é a única a sorrir um sorriso largo e grato - igual ao que tem agora no rosto, à medida que desliga as luzes da entrada, e fecha a porta atrás de si.