terça-feira, dezembro 29, 2009

Pousio (1).

Às vezes não se escreve porque se está ocupado a viver. Outras tantas não é nada disso - não se escreve porque não se escreve, e pronto. Depois há tudo o resto, todo o material que não cabe na escrita, difícil de coagular num parágrafo ou dois: os jantares, as conversas, os sítios onde vamos estando, o frio da noite a atravessar a lã do casaco dentro do qual trememos e sorrimos. Num caderno com a lombada coçada do uso, anotamos datas, nomes de ruas, frases soltas, quatro linhas minutos antes do início de um concerto, a cor dos sapatos do violoncelista; deixamos pontas soltas, que mais tarde decidimos atar ou não. É possível que, ainda assim, nada surja: nem texto ou germe dele. Fica para a próxima.

Alentejo.



Annus mirabilis.

Dois mil e nove foi um ano prodigioso em mais do que um sentido. Arrumou-se quase tudo, desde a casa às ideias; fez-se o ponto da situação em vários campos, e foi-se coxeando habilmente pelo meio de territórios inexplorados. Foi também o ano da fuga derradeira dos fantasmas de dois mil e oito e anteriores, e do reatar feliz de nós esquecidos desde a saída da Faculdade. Conheci pessoas sem as quais já não imagino a minha vida, e que me levam a perguntar-me por que terrenos estranhos andei sem elas ao lado - não é um exagero, é um facto. Ouvi boa música e má música; vi bons filmes e filmes maus; tornei a beber café, depois de um interregno de oito meses; tive conversas que começaram de tarde, e acabaram no dia seguinte de madrugada, com a voz já erodida; ri-me em jantares em restaurantes chineses e afins, em almoços, em ensaios gerais, em alturas mais e menos oportunas; falei alto e falei baixo; comecei por fim a aprender japonês; voltei ao Alentejo; ouvi e contei histórias; senti-me tão vivo em tantas alturas que achei que morria. Já na coda do ano, vem-me à cabeça aquele "A quite unlosable game", do poema de Larkin que dá nome a este texto. E sendo certo que há jogos aos quais havemos sempre de perder - umas vezes mais do que outras -, dois mil e nove foi sem dúvida a aposta ganha que não fiz.

O liceu.

Não ter tido paciência para o liceu na idade em que lá estive. Não ter de todo paciência para atitudes dignas de liceu agora, quase com trinta anos.

One-liner.

Acredito pouco em disappearing acts, e em reappearing acts menos ainda.

quinta-feira, dezembro 03, 2009

De dentro de um livro.

Há uma fotografia em que tu estás, em que a água te chega quase ao joelho: ainda não deixaste crescer a barba como agora, pareces anos mais novo, e não chego a perceber se estás feliz nela, ou se a cara que tens é de outra coisa. Não sei onde foi tirada - caiu-me no outro dia de dentro de um livro, e agora não sei se a sepulte novamente entre as páginas, ou se te tente achar para ta devolver, ou para que me expliques que olhar é aquele.

Domingos (2).







O mundo a esta hora.

Consideremos os ruídos assíncronos das respirações nesta aula de japonês às nove da manhã. Fora da sala, Lisboa envolta em branco: impossível ver o fundo da rua; os prédios do lado oposto quase apagados. Consideremos o silvo do ar nas suas entradas e saídas metronómicas, mais trémulas hoje pelo frio que se infiltra, apesar dos casacos que permanecem vestidos. No quadro branco - ainda cheio dos traços mal apagados de outras aulas, onde letras gregas se misturam com tremas -, revêem-se partículas: を, で, と. O mundo a esta hora faz por me passar ao lado, e eu aceito o facto como o sibilo fino do respirar dos que se sentam comigo aqui - as mãos frias, os pés a voltar aos poucos à vida.

Homenagem a Adília Lopes.

O texto é muitas vezes um pretexto. O post às vezes é um post-it.

Cautela.

JOANA
Não somos náufragos numa ilha. Nem escravos. Nem somos a mesma pessoa. Somos duas pessoas diferentes que vivem no mundo e que gostam uma da outra.

VASCO
Que gostam.

JOANA
Que gostam. Eu sou mais cautelosa que tu com as palavras.


[ Pedro Mexia: Nada de Dois. ]

Cut short.

Podia realmente tentar fazer sentido dos hiatos quase constantes deste espaço, ou tentar escrever sobre eles. Mas preferia explicar as alterações fonéticas da forma informal do passado afirmativo dos verbos-u. Faço-me entender?