Deixei de falar à minha avó paterna algures em dois mil e três por motivos que não são relevantes para o caso. Passámos cinco anos sem nos dirigirmos palavra; passámos várias vezes um pelo outro na sala grande da casa, na cozinha, nas escadas, sem que uma vez sequer se quebrasse o vazio. Ela envelheceu, eu também. Em cinco anos, a mobilidade reduziu-se, as palavras trocadas com outras pessoas também - o corpo foi desistindo aos poucos de se mover, de comer, de fazer um som que fosse. E ainda o silêncio entre nós. Há coisa de um mês, não aguentei: com a voz a mergulhar-se fundo na garganta, as mãos a tremer não sei de raiva se do quê, aproximei-me dela pouco antes de sair, dei-lhe um beijo na face direita, e disse-lhe
- Até amanhã, avó
como se nada se tivesse passado entre nós. Foi assim que me apercebi de que o meu ódio tem um prazo de validade, ou de que aprendi o perdão como um catecismo. Todos os Sábados, quando a vejo sentada no sofá, aproximo-me dela e digo-lhe
- Olá, avó
e ela, cuja voz permaneceu tanto tempo sem dar sinal, devolve-me um
- Olá, filho
que me parte a cada vez. Este Sábado, à mesa, a propósito de qualquer coisa de que se falava, deixei sair um comentário que fez com que a minha avó se risse: estou a falar de uma gargalhada sonora e de um sorriso grande, ambos vistos pela última vez há cinco anos ou mais. Ter conseguido involuntariamente fazer rir a minha avó preencheu-me o Sábado. E como não sei se terei a sorte de ou a habilidade para repetir o feito, assinalo-o aqui: no dia vinte de Dezembro deste ano, a minha avó Ilda riu-se - e naquele momento senti-me genuinamente feliz.