quarta-feira, dezembro 31, 2008

Para o ano.

Bon Iver, Beach House, Frightened Rabbit, Okkervil River, M83 e Billie Holiday na aparelhagem. Ao lado da televisão, quatro filmes para a noite; suspeito que ao terceiro já estarei a dormir, mas nunca se sabe. Álcool q.b. e jantar pronto a ir ao forno. "Para o ano" é já daqui a umas horas. Até lá.

Comentário desnecessário (75).

Pun intended.

Dois mil e oito: ano de muitos fins e poucos princípios. Pun intended.

Youth.

Foi tirada em Oeiras há coisa de treze anos. O que é muito. Gosto do facto de ter sido tirada às nove e quarenta e três da manhã. Gosto do cabelo enorme para os meus actuais critérios, das borbulhas vestigiais e vermelhas ao cimo da testa; dos óculos que usava, da barba por fazer debaixo do queixo que não via nu há tanto tempo; do meu corpo ainda seco. Gosto da buganvília lá atrás, da serigrafia da Maluda meia escondida dentro de casa. Talvez aquando do disparo tenha pensado ou mesmo dito

- A sério, mãe, para quê a fotografia?

com o habitual ar de cansaço que fazia. Talvez daí a expressão com que estou. Cansado aos quinze anos, que ridículo. Lembro-me de algumas, tiradas um ano antes, em que era apenas um esqueleto sorridente e escuro - uma semana e meia nos Açores, a dormir pouco e a comer mal, teve esse efeito. Depois da saída de um nono ano agreste, que me deixou com pele, osso e pouco mais, esta fotografia: achada hoje por acaso aqui em casa, como um fantasma que resolve finalmente vir tomar chá. Ponho-a de parte. Acendo a luz da casa de banho e olho para o espelho. Se hoje passasse por mim na rua, acho que não me reconhecia.

terça-feira, dezembro 23, 2008

Cicatricial.

Suturadas as lacerações - maiores e menores, conforme a dimensão dos golpes infligidos -, passada a convalescença, um coração é isto: uma coisa que se oferece e se protege, se fere e se remenda, se tira da vista do público chegada a hora; uma coisa engraçada e quente que nos trai a tempos, sobretudo quando não o esperamos.

Vermelho (5).

Lições de mergulho.

Dou por mim a dormir muito quieto do meu lado da cama, como se agora a cama ainda tivesse outro lado que não o meu. Quando acordo, a almofada da direita continua imóvel - intocada, como que em espera. Dou por mim a ouvir vezes sem conta uma mesma música até lhe conhecer a letra de cor, e apanho-me a mexer os lábios no meu reflexo nos vidros das portas daqui de casa quando passo por elas. Passo dias sem sair, e dias sem pôr pé em casa a não ser para dormir. Pouco antes de adormecer, penso no lugar que está ao lado do meu - incógnito e não preenchido, um espaço em branco ridículo contra o qual não adianta lutar ou deixar de lutar. É este o ponto em que estou: entre o salto e o som surdo da água que me engole o corpo; entre a subida dos degraus e o oscilar temível da prancha nas alturas.

A orla do mundo.

Há que perceber que nem todos os dias são maus. O que não é o mesmo que dizer que não há dias maus. Os dias não são é todos maus. Para ser sincero, há dias bons; mesmo muito bons. E depois há os outros: os dias em que as palavras não saem, ou se saem cortam, ferem. Penso muitas vezes em deixar de falar, de dizer coisas, dar notícias; em remeter-me ao silêncio, fingir que caio da orla do mundo.

Ilda.

Deixei de falar à minha avó paterna algures em dois mil e três por motivos que não são relevantes para o caso. Passámos cinco anos sem nos dirigirmos palavra; passámos várias vezes um pelo outro na sala grande da casa, na cozinha, nas escadas, sem que uma vez sequer se quebrasse o vazio. Ela envelheceu, eu também. Em cinco anos, a mobilidade reduziu-se, as palavras trocadas com outras pessoas também - o corpo foi desistindo aos poucos de se mover, de comer, de fazer um som que fosse. E ainda o silêncio entre nós. Há coisa de um mês, não aguentei: com a voz a mergulhar-se fundo na garganta, as mãos a tremer não sei de raiva se do quê, aproximei-me dela pouco antes de sair, dei-lhe um beijo na face direita, e disse-lhe

- Até amanhã, avó

como se nada se tivesse passado entre nós. Foi assim que me apercebi de que o meu ódio tem um prazo de validade, ou de que aprendi o perdão como um catecismo. Todos os Sábados, quando a vejo sentada no sofá, aproximo-me dela e digo-lhe

- Olá, avó

e ela, cuja voz permaneceu tanto tempo sem dar sinal, devolve-me um

- Olá, filho

que me parte a cada vez. Este Sábado, à mesa, a propósito de qualquer coisa de que se falava, deixei sair um comentário que fez com que a minha avó se risse: estou a falar de uma gargalhada sonora e de um sorriso grande, ambos vistos pela última vez há cinco anos ou mais. Ter conseguido involuntariamente fazer rir a minha avó preencheu-me o Sábado. E como não sei se terei a sorte de ou a habilidade para repetir o feito, assinalo-o aqui: no dia vinte de Dezembro deste ano, a minha avó Ilda riu-se - e naquele momento senti-me genuinamente feliz.

Manual de instruções.

Want.

O que eu quero é o meu ombro esquerdo encostado ao teu direito nos nossos lugares no sofá. O que eu quero é jantar contigo ao lado ou à minha frente como fazíamos, repetir os ritos antigos, fingir que não aconteceu nada. O que eu quero é telefonar-te como fazia quando acordavas, sacudir do corpo estes dois meses, dizer ao meu cérebro que estiveste fora, viajaste, e só agora estás de regresso: abraçar-te como num aeroporto ou depois de uma ausência, encaixar as minhas mãos pequenas dentro das tuas grandes, e deixar-me ficar junto a ti.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Por uns tempos.

Tomemos como exemplo o rapaz próximo dela na fotografia, a sorrir de lado para quem a tira. Quando o rolo chegar a ser revelado - daí a quase meio ano -, nada daquilo existirá já: nem sorriso, nem ela, nem ele. O rectângulo de papel colorido e brilhante é tudo o que resta deles. E como agora nem eles restam, não tardará a que se rasgue a fotografia e se ponha a máquina de lado por uns tempos.

Comentário desnecessário (74).



Ficção (62).

Se me resolver a não tornar a abrir as portadas das janelas será sempre noite lá fora: os pássaros deixarão de ensaiar o seu canto agudo e cíclico, os carros deixarão de passar na rua lá ao fundo; é até possível que não toque ninguém à porta, ou que o telefone não se ilumine como faz quando recebo um telefonema ou uma mensagem. Se deixar corridas as cortinas é noite aqui dentro e não faz mal. Deixo-me andar em pijama, percorro os andares sabendo que é noite, e que à noite as coisas perdoam-se: as falhas, as inseguranças, as almofadas molhadas pelo choro, ou mesmo as coisas de que nos esquecemos, as luzes que deixamos acesas para nos sentirmos mais acompanhados no nosso exílio voluntário. À noite o tempo não passa: quando é sempre noite não escurece e não amanhece; posso ficar aqui sentado na sala com o coração que ninguém resgata porque não dou sinal de vida. É de noite e não há heróis - só gente como eu, gente triste de pijama e roupão; gente que vai até à cozinha buscar qualquer coisa para comer ou beber, sentindo o frio a infiltrar-se pelas nesgas dos chinelos. E é também na constância da noite que podemos dedicar-nos a esquecer o que nos foi querido: a casa que partilhámos ainda que por apenas uns meses e na qual ficaste; a cara que fazias quando acordavas; as tardes passadas encostados um ao outro a ver o que quer que fosse na televisão a que tirávamos por hábito o som. São estas coisas que ficaram como esquírolas que esqueço nesta noite permanente; que tento tirar de debaixo da pele, com insucesso abundante a cada tentativa, até desistir e perceber que não é a noite que é permanente: és tu.

L'ennui.

Fui-me enchendo de enfado até não ter mais onde o guardar ou sítio para onde o pudesse verter. Um dia acordei e a minha vida não era a minha vida mas um montículo dos tédios que fui coleccionando e que armazenei cautelosamente, depois de classificados e rotulados. Nesse dia, peguei na mala com o pouco que quis levar atrás de mim, saí de casa, e não voltei.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Gruas.

Duas gruas que se sustêm e apontam erráticas, batidas pela água que lhes aviva o amarelo. Nas alturas e a metros uma da outra, talvez se sintam menos sozinhas; mais perto, conseguimos ouvir os uivos do vento que lhes corre o esqueleto em malha. A chuva, é certo, abrandará; o vento com ela. E quando a construção daquele bloco de escritórios for retomada é também certo que serão apenas mais duas gruas. Mas não hoje. Hoje, com uma chuva impossível a ressoar-lhes pelo entrecruzado metálico, eram duas gruas lado a lado, molhadas e sem ninguém dentro, como uma metáfora estúpida de qualquer coisa que foge e não volta - de companhia na impossibilidade da mesma.

Gradientes.

A inércia.

Numa experiência sobre a inércia, um homem de bata corre ao longo de um corredor; atrás de si, um carrinho com quatro ou cinco provetas e copos graduados, com água até meio, que estremecem e tilintam. A dado ponto, vira abruptamente à direita: o carrinho segue-o; os conteúdos do carrinho seguem em frente durante uns segundos, até à queda que lhes abrevia o voo. Tenho o maior respeito pelo instante em que os objectos que continuaram o seu curso - sem efectuar a abrupta viragem à direita - se sustêm ainda no ar, sem indício de mudança, e sem ideia de que em segundos se estilhaçarão.

Esopo.

Lembro-me de a Martha Argerich contar aquela história de quando tinha tido um recital que não queria fazer. Para se escusar, resolveu dizer que tinha cortado um dedo; e para que a desculpa fosse real cortou-o mesmo. O dedo não sarou a tempo do seu concerto seguinte, a que não queria faltar.

Notas.

Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.

[ Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas. ]

Ficção (61).

Naquela noite esperei-te e não chegaste. Tu sabes como sou com as esperas: andei de um lado para o outro; sentava-me, levantava-me, tornava a sentar-me. E o telefone quedo no descanso; a campainha muda por cima da porta. Perdi a conta às horas e às vezes em que disse para mim

- Vou contar até dez e tu chegas

ou, enquanto me assomava à janela da sala,

- O próximo carro branco é o teu.

Passaram carros brancos atrás de carros brancos: nenhum o teu. Houve um momento em que pensei até que o teu carro não fosse branco, ou que tivesse desaprendido a contar. Nessa noite em que não vieste, sentei-me de pernas cruzadas no chão frio da varanda, ao lado dos vasos de alfazema: lá em cima, no tecido estranho do escuro, pontos brancos inconstantes, mais e menos intensos, maiores e mais pequenos. À medida que as horas passaram e o vácuo do teu corpo ficou por preencher, apercebi-me de que não tornarias à casa onde há quinze anos tínhamos entrado pela primeira vez.

Tables and chairs (1).

Status report (31).

A ver isto e a rir-me.