terça-feira, abril 28, 2009

Por fazer.

Aprender a nadar em terra. Dar passos num vazio confortável. Morder o anzol. Escrever de punhos e dentes cerrados. Aprender finlandês. Rir-me por dentro. Ouvir o canto dos pássaros nas horas imberbes da madrugada. Deixar obra. Amar mais. Assobiar de lábios fechados. Engolir o mundo. Viajar às avessas. Perder o passado num bolso roto. Ser feliz.

Nihongo (3).

Instruções.

Começa por descrever a trajectória do homem ao chão, diagonal e perpendicular a tempos. Elenca o ruído mudo do tombo do homem na espessura do tapete - como a mancha avermelhada abre caminho, lenta, por entre o relevo do estampado. O homem não está morto: bebeu apenas em demasia. Descreve a garrafa destapada, deixada em cima da mesa da sala. Descreve o brilho das luzes, que ressoa no copo ao lado do corpo tombado do homem; o silvo eléctrico dos filamentos das lâmpadas; a televisão que o temporizador desligará daí a minutos; os pássaros esporádicos na grande árvore ao centro da praceta. Termina na entrada do apartamento, na chave que se mantém imóvel na fechadura: do lado de fora, alguém bate na porta com força suficiente para a fazer estremecer, e chama alto por um nome irrelevante - um nome que crê que não lhe tornará a responder. Mas não é esta a vez derradeira.

Correspondência.

Um deles morre. As cartas até então enviadas, assíduas e invulgares, cessam. Segue-se um silêncio estático.

Way down.

Houve um instante em que fechei os olhos e, cabisbaixo, pedi ao vento áspero daquela noite que te trouxesse de volta. Sentei-me de frente para a porta, no chão, e esperei pelos teus passos na calçada, a fazer o caminho até aqui; pelos teus sapatos na escada do prédio em que vivo; pelo restolhar característico da roupa no teu corpo; pelo teu indicador na campainha do andar, que soava diferente quando eras tu quem a tocava; pelos teus lábios; pelo teu cheiro; pelo abraço demorado que dávamos de cada vez que chegavas. Sei que não virás, mas há noites - às vezes, dias inteiros - em que ainda te espero.

sexta-feira, abril 17, 2009

Baile de máscaras.

Debaixo de uma chuva inesperada, escrevi no nevoeiro do vidro deste táxi uma mensagem inversa e despercebida. Viajo incógnito, sob a coberta desta bátega - das nuvens anémicas que nascem prontas do alcatrão -, mascarado de ti como do mundo.

Correio (2).

Miss Otis regrets.

Devíamos sair desta casa, desta cidade, deste país; pegar em roupa ao acaso, atirá-la para dentro de uma mala de viagem e partir. Comprar bilhetes de avião e de comboio, aprender os rudimentos de umas quantas línguas que se falem para onde formos. Não sabemos para onde vamos, mas vamos. Cruzamos os braços, sentamo-nos em cima das malas que pousámos à entrada do prédio, esperamos que o táxi para o aeroporto chegue. Atrás de nós, a porta fechada. Com a cabeça baixa, deixamos que nos corra pela cara uma risca de água tépida e de caudal irregular, que nos pontilha calças, camisola, o sapato direito. Esperamos que pare, mas sabemos que não será depressa.

The words that do stand.

IV

It doesn't matter what you think.
Words are found responsible
all you can do is choose them
or choose
to remain silent.     Or, you never had a choice,
which is why the words that do stand
are responsible

and this is verbal privilege


[ Adrienne Rich: "North American Time." The Fact of a Doorframe: Selected Poems, 1950-2001. ]

Água.

De vestido vermelho e cabelo preto perdido, ela toca uma água muito líquida.

sexta-feira, abril 10, 2009

Noites (10).

A rua em que vivo está praticamente deserta. Abro uma janela; não passam carros, não se ouve gente. Nos prédios à frente deste, raras luzes acesas. Em repeat, soa pela casa a versão acústica de "Soft shock", dos Yeah Yeah Yeahs.

Publicidade.

Inês.

Estou atrasado. De há coisa de um ano ou dois para cá, tornou-se habitual: perdi a pontualidade quase por completo. Saio no Rossio, e faço os dois minutos da Rua do Carmo a pé, em passo de corrida. Como não a vejo à primeira - e sou bastante mau a reconhecer caras, mesmo as conhecidas, no meio da multidão -, ligo-lhe. Dou com ela. Decidimos sair dos Armazéns do Chiado no momento exacto em que começa a chover uma daquelas chuvas incisivas de Abril. Entre gargalhadas, escolhemos à pressa ir ao Vertigo, onde passamos duas horas com um bule de chá branco aparentemente interminável em cima da mesa. A dado momento, por causa de um ataque de riso simultâneo, ela pergunta-me se as pessoas que ali estão pensarão que somos doidos ou só excêntricos. Respondo-lhe que, provavelmente, ambos. Tira-me uma fotografia. Há muito nestas duas horas que não se decalca na escrita: as private jokes; aquela cumplicidade estúpida que só anos de convivência - no nosso caso, pelo menos vinte e dois - trazem; todo um repositório de episódios, passados e presentes, que, relembrados, fazem rir. Apesar do tempo contado, saímos deste café com o coração cheio. Caminhamos um pouco; dizemos até à próxima em frente ao Pereira. Esperamos que seja em breve.

Sententiae.

Deixado cair, como a chave que se perde e obriga à mudança da fechadura. Quando chegar, a porta estará fechada. De dentro, não abrirão.

A mulher oca.

Uma casca daquilo que foste, e apenas isso: esvaziada de propósito ou significado, repetindo vez após vez os mesmos gestos apagados, as mesmas palavras que são também elas casulos esventrados das de antes. Quando corres cada divisão da tua casa, quando limpas o pó, quando preparas o jantar ao marido que pensas legitimar-te a existência, quando recebes mecanicamente os teus escassíssimos amigos, lembra-te: não és tu quem o faz - tu mataste-te, e para que não pudesses voltar enterraste o corpo longe. Quem persiste no teu lugar é tão-só a tua sombra translúcida, o fantasma de ti mesma - puído e cortês, de olhar ausente como o dos manequins a que desmontam corpo inteiro sem esgar de dor.

quinta-feira, abril 02, 2009

Favoritos.

Tanto quanto me lembro, nunca tive favoritos em nada: nunca preferi uma caneta a outra, nem tive uma camisola de que gostasse mais do que das restantes; não tenho uma banda, um autor, um programa de televisão, um livro, ou sequer uma música a que esta etiqueta se cole. Gosto de muita coisa e, regra geral, de muita coisa ao mesmo tempo - um malabarismo que faço há já alguns anos, e que ou resulta muito bem ou nem por isso. Ontem, contudo, apercebi-me de que tenho pelo menos um favorito: a primeira lente que comprei para a minha máquina fotográfica: uma 35mm f/2.0, com que tiro, desde Maio de dois mil e sete até à data, quase todas as fotografias.

Bibliografia.

A estante.

Livros novos e velhos, quase intocados ou com folhas marcadas e manchadas nos sítios onde nos demorámos mais ou nos comovemos; livros roçados e coçados nas lombadas, com dobras e sublinhados a lápis ou a tinta. Livros que se abrem automáticos em páginas certas, como que manuseados por leitores invisíveis - o poema lido em noite de insónia, cinco falas de uma peça, oito linhas de um romance. Livros que esperam outros e outros donos, a seguir a nós e depois deles, como testemunhos da transitoriedade temível de tudo.

Dialectologia.

A Valediction Forbidding Mourning

My swirling wants. Your frozen lips.
The grammar turned and attacked me.
Themes, written under duress.
Emptiness of the notations.

They gave me a drug that slowed the healing of wounds.

I want you to see this before I leave:
the experience of repetition as death
the failure of criticism to locate the pain
the poster in the bus that said

my bleeding is under control.

A red plant in a cemetery of plastic wreaths.

A last attempt: the language is a dialect called metaphor.
These images go unglossed: hair, glacier, flashlight.
When I think of a landscape I am thinking of a time.
When I talk of taking a trip I mean forever.
I could say: those mountains have a meaning
but further than that I could not say.

To do something very common, in my own way.


[ Adrienne Rich: The Will to Change. ]

Been there, done that.

Por baixo da janela do meu quarto passa alguém ao telemóvel. Sem querer, oiço-o dizer

- Então, meu amor, diz lá que me amas

com a convicção a tempos velada e arrogante da reciprocidade. Encolho os ombros, levanto-me da cadeira, e vou pôr chá a fazer.

Diagnóstico diferencial.

Ter ouvido vinte e uma vezes seguidas o "Bizarre love triangle", dos New Order.