Proporção primeira.
Por cada post que escrevo e publico existem cinco que escrevo e não publico.
(E pelo menos uns dez que não escrevo e guardo para mim.)
"So that I may say at all times, even when you do not answer and perhaps hear nothing, something of this is being heard, I am not merely talking to myself [...]." (Samuel Beckett, Happy Days)
Por cada post que escrevo e publico existem cinco que escrevo e não publico.
Ela disse-te
Mudei-me para Lisboa em Novembro de 2001. O primeiro andar em que vivi com a minha flatmate fica a cerca de dez minutos daquele em que vivo agora. Passados quatro anos, posso dizer sem hesitar que gosto cada vez mais deste sítio. Tenho tudo (ou quase) perto de casa: supermercado, uma padaria fenomenal e uma pastelaria que tem talvez os melhores croissants que comi até hoje (e nem me vou pôr a falar dos folhados de espinafres). Banco, mercearia, duas farmácias, uma papelaria e um quiosque. Centro comercial pertíssimo. Mas, mais do que isto: dou por mim a sentir-me em casa aqui,
... cinco livros, quatro dos quais não li e um que tenho folheado; dois relógios, um que uso no pulso direito e outro que me acorda em manhãs mais problemáticas; uma garrafa de água que se diz ingénua de trás para a frente; um candeeiro - palavra velha - que me dá luz durante as minhas madrugadas de leitura, escrita e sonolência. Para além disto, o livro que ando a ler, o telemóvel, as ocasionais folhas de música, uma chávena de chá ou de café, um prato com migalhas das bolachas que comi, um ou outro CD que esteja a ouvir.
Coming
Entro no prédio depois de acenar um até amanhã à R. que arranca de carro rumo a casa. Passei grande parte da noite na conversa com ela e apercebo-me de que aquilo que temos há anos, apesar dos câmbios inevitáveis com o decorrer do tempo, se mantém inalterado. Numa noite em que um cachecol não bastou e em que tiritei de frio desde a saída do cinema até ao carro, é uma constatação que me aquece.
Tenho o dicionário aberto à minha frente sem saber
The Rain
Quem estiver viciado no "Le Coucou au fond des bois" (parte do Le Carnaval des Animaux, do Camille Saint-Saëns) levante o braço.
Entro em casa e dou pela sala cheia de luz quando pensava que o sol dificilmente ali entraria. Dou pelos vidros claros, pelo chão que me encandeia; pela vida secreta das divisões que não presencio porque durmo.
Passei o final da tarde de Sábado e uma boa parte do meu Domingo na companhia da voz adorável de Blossom Dearie. A ouvir com urgência e com direito a faixas em repeat: Blossom Dearie, My gentleman friend e Give him the ooh-la-la.
E numa voz murmurada, quando eu acordo e me volto, dizes-me ao ouvido
Onze da manhã. Acordar. Fazer a cama. Pôr café a fazer. Tomar pequeno-almoço. Tomar banho. Sair de casa. Ligar o alarme. Trancar a porta. Entrar num táxi. Pagar. Sair. Andar. Entrar. Pedir um café duplo. Pagar. Sentar-me. Bebê-lo.
Quatro e oito. Praça de Espanha. Destino por determinar. Rádio entre a Radar e a Antena 2. Um velho atravessa, lento, por entre os carros. Laranja. Vermelho. Compasso de espera.
Estás no banho. A água quente escorre-te pelas costas. É Inverno. Tens a toalha pendurada no manípulo da porta. Ouves, do outro lado da casa, o som vago da máquina do café e das torradas que saltam, sincronizadas, da torradeira.
E a luz invade a casa. O soalho, as paredes, os tectos, os vidros das portas, as janelas, os tampos das mesas, os livros nas estantes, as cordas e as teclas do piano, a tua chávena de café ainda a meio.
Sair de casa. Apanhar um táxi. Pagar. Sair. Entrar no edifício. Subir as escadas. Andar mais um pouco. Bater à porta.