quarta-feira, novembro 30, 2005

Proporção primeira.

Por cada post que escrevo e publico existem cinco que escrevo e não publico.

(E pelo menos uns dez que não escrevo e guardo para mim.)

Comentário desnecessário (38).

Noventa e oito noventa e nove.

Ela disse-te

- Acredita que também achei estranho

mas tu não ouviste porque a tua pele ainda pensava nele; porque o teu nariz ainda se lembrava do cheiro dele. Ela continuou, ainda assim

- O T. perguntou por ti no outro dia mas

e tu ainda ausente, uma distância quilometricamente impossível. Tu ali, com o café a arrefecer à tua frente, a ouvires a ladainha férrea dos comboios que passavam ao lado da plataforma. A lembrares-te das manhãs em que, arrancado do falso torpor dos subúrbios pelas seis da manhã, te sentavas na carruagem do metro e fazias o percurso habitual

(Cais do Sodré, Baixa-Chiado, Marquês de Pombal, Campo Pequeno)

ao som de um CD ou a ler um livro. De como esses dias, feitos remotos, permanecem como um marco; a tua memória nunca os deixará passar. Os almoços esporádicos num restaurante italiano com o A., com quem te encontravas à saída da estação do Saldanha e durante os quais ficavas a par dos seus mais recentes triunfos ou desaires passionais.

- Pois, sabes, é uma situação muito complicada até porque

Dos anos agora aparentemente longínquos de noventa e oito noventa e nove guardarás sempre a memória confortável de gente conhecida (a quem esqueceste com rapidez óbvia), de coisas feitas, de textos escritos, de estreias e glórias académicas, de amizades novas (das quais poucas restaram); de uma nova vida; do começo dos começos.

Pegas no café. Bebes. E deixas de ouvir a conversa à tua frente e à tua volta.

Happy to live here.

Mudei-me para Lisboa em Novembro de 2001. O primeiro andar em que vivi com a minha flatmate fica a cerca de dez minutos daquele em que vivo agora. Passados quatro anos, posso dizer sem hesitar que gosto cada vez mais deste sítio. Tenho tudo (ou quase) perto de casa: supermercado, uma padaria fenomenal e uma pastelaria que tem talvez os melhores croissants que comi até hoje (e nem me vou pôr a falar dos folhados de espinafres). Banco, mercearia, duas farmácias, uma papelaria e um quiosque. Centro comercial pertíssimo. Mas, mais do que isto: dou por mim a sentir-me em casa aqui,

(o que quer que isso signifique)

a sentir-me feliz por comprar o jornal no mesmo sítio e por receber, de todas as vezes que lá vou, um sorriso; por saber que este bairro se vai tornando, gradualmente, um sítio que conheço bem e no qual me enraízo a cada dia.

(Gosto de viver aqui.)

Now reading (2).

sábado, novembro 26, 2005

Na minha mesa-de-cabeceira tenho...

... cinco livros, quatro dos quais não li e um que tenho folheado; dois relógios, um que uso no pulso direito e outro que me acorda em manhãs mais problemáticas; uma garrafa de água que se diz ingénua de trás para a frente; um candeeiro - palavra velha - que me dá luz durante as minhas madrugadas de leitura, escrita e sonolência. Para além disto, o livro que ando a ler, o telemóvel, as ocasionais folhas de música, uma chávena de chá ou de café, um prato com migalhas das bolachas que comi, um ou outro CD que esteja a ouvir.

À procura de um texto autobiográfico (19).

Coming

On longer evenings,
Light, chill and yellow,
Bathes the serene
Foreheads of houses.
A thrush sings,
Laurel-surrounded
In the deep bare garden,
Its fresh-peeled voice
Astonishing the brickwork.
It will be spring soon,
It will be spring soon -
And I, whose childhood
Is a forgotten boredom,
Feel like a child
Who comes on a scene
Of adult reconciling,
And can understand nothing
But the unusual laughter,
And starts to be happy.


[ Philip Larkin: The Less Deceived. ]

Ontem, às 2h14mins.

Entro no prédio depois de acenar um até amanhã à R. que arranca de carro rumo a casa. Passei grande parte da noite na conversa com ela e apercebo-me de que aquilo que temos há anos, apesar dos câmbios inevitáveis com o decorrer do tempo, se mantém inalterado. Numa noite em que um cachecol não bastou e em que tiritei de frio desde a saída do cinema até ao carro, é uma constatação que me aquece.

(Comunico-lho via mensagem escrita.)

Meto a chave à porta, entro, tiro o casaco. Vou acendendo as luzes ao longo da casa

(hall, quarto, sala, cozinha)

e sento-me, por momentos, no banco do piano. Encosto a cara ao teclado.

A noite foi boa. Sim. A noite foi boa.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Hoje, às 22h07mins.

Verbo: escrever.

Tenho o dicionário aberto à minha frente sem saber

(avulsão, avulsivo, avulso, avultações, avultado, avultar)

a que propósito. Esqueço-me do que procurava. Corro as páginas, confiro ortografias de palavras que sei demasiado bem que não tenciono usar nos meus textos. Ou se calhar é isso, estou

(elipse, elipsígrafo, eplipso-, elipsógrafo, elipsoidal, elipsóide)

à procura das que vou usar das próximas vezes que ligar o computador e entrar no Word. Escrevo e esqueço-me do que escrevo

(guiante, guião, guiar)

com inédita facilidade. Não é que não me apegue aos textos; é que, a partir de um ponto, os partos tornam-se ágeis, ginasticados: sei o que quero, sei como o vou escrever e até sei quanto tempo vou demorar. O problema é ter um daqueles dias em que nada sai, em que consigo ficar a olhar duas ou três horas para o cursor intermitente no início da página em branco que me rosna

(pleno, pleocroísmo, pleomorfismo, pleonasmo)

ameaçador, porque escrever se transformou em qualquer coisa de improtelável. Escrever; cortar; rever; cortar mais; rever. Um processo constante

(rasura, rasurar)

e axiomático. Saio. Sento-me. Como. Bebo. Ando. Leio. Falo. Vejo. Volto. E escrevo. Digiro a realidade e, quando calha, faço-a ficção. Terminado o processo, repito-o sem me repetir. Abro o dicionário na primeira página

(a, A)

e retomo a leitura procurada do que escrever.

Ouvir chover.

The Rain

All night the sound had
come back again,
and again falls
this quiet, persistent rain.

What am I to myself
that must be remembered,
insisted upon
so often? Is it

that never the ease,
even the hardness,
of rain falling
will have for me

something other than this,
something not so insistent -
am I to be locked in this
final uneasiness.

Love, if you love me,
lie next to me.
Be for me, like rain,
the getting out

of the tiredness, the fatuousness, the semi-
lust of intentional indifference.
Be wet
with a decent happiness.


[ Robert Creeley: Poems 1950-65. ]

Comentário desnecessário (37).

terça-feira, novembro 15, 2005

A bem das estatísticas...

Quem estiver viciado no "Le Coucou au fond des bois" (parte do Le Carnaval des Animaux, do Camille Saint-Saëns) levante o braço.

(Alguém?)

Now reading (1).

A vida secreta da minha sala.

Entro em casa e dou pela sala cheia de luz quando pensava que o sol dificilmente ali entraria. Dou pelos vidros claros, pelo chão que me encandeia; pela vida secreta das divisões que não presencio porque durmo.

(Há vida antes da uma da tarde.)

Qualquer coisa muda. Sento-me no sofá, com o calor a encher-me os pés e com a mão direita alumiada por um rectângulo de claridade.

(Deixo-me estar. Adormeço.)

segunda-feira, novembro 14, 2005

Listening sessions (5).

Passei o final da tarde de Sábado e uma boa parte do meu Domingo na companhia da voz adorável de Blossom Dearie. A ouvir com urgência e com direito a faixas em repeat: Blossom Dearie, My gentleman friend e Give him the ooh-la-la.

(Três álbuns luminosos. Com o patrocínio da FNAC.)

Ontem, às 15h07mins.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Ficção (18).

E numa voz murmurada, quando eu acordo e me volto, dizes-me ao ouvido

- Já venho, vou comprar pão. Queres alguma coisa da rua?

e eu sorrio.

Sinais do frio.

Ontem, das 11h00 às 17h15mins.

Onze da manhã. Acordar. Fazer a cama. Pôr café a fazer. Tomar pequeno-almoço. Tomar banho. Sair de casa. Ligar o alarme. Trancar a porta. Entrar num táxi. Pagar. Sair. Andar. Entrar. Pedir um café duplo. Pagar. Sentar-me. Bebê-lo.

(Acordar novamente.)

Pagar. Subir três andares de escadas. Entrar. Falar. Fazer planos. Marcar prazos e datas. Rir-me. Ser inteligente. Defender ideias e / ou perspectivas. Esperar que corra tudo bem. Sair a conversar. Tomar café. Sentar-me, conversar mais um pouco e sentir-me bem naquela companhia; sentir-me sortudo; muito. Sair. Ter boleia. Ir ao Pingo Doce. Fazer compras

(bolachas, gelado, saladas, iogurtes, chá, chocolate, queijo)

e chegar a casa com a sensação estranha de missão cumprida.

terça-feira, novembro 08, 2005

Happy world.

Tive a confirmação de que o mundo era um lugar feliz quando o vi escrito em letras grandes de um vermelho comido pelo sol. Happy world.

(E eu acreditei.)

Ficção (17).

"Hoje ficas, não ficas?"

segunda-feira, novembro 07, 2005

Ontem, às 16h08mins.

Quatro e oito. Praça de Espanha. Destino por determinar. Rádio entre a Radar e a Antena 2. Um velho atravessa, lento, por entre os carros. Laranja. Vermelho. Compasso de espera.

(Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis.)

Verde. Arrancar. Primeira. O sol que entra pelos vidros do carro. Puxar a pala do lado do condutor. Temperatura dezoito graus cá dentro.

Ficção (16).

Estás no banho. A água quente escorre-te pelas costas. É Inverno. Tens a toalha pendurada no manípulo da porta. Ouves, do outro lado da casa, o som vago da máquina do café e das torradas que saltam, sincronizadas, da torradeira.

("Só mais cinco minutos.")

Fechas a água quente e só depois a água fria. Pegas na toalha apenas para a deixares no mesmo sítio. Atravessas a casa molhada e regressas à cama. Não sabes quando te vais levantar. Abraças-te à almofada na esperança de que o cheiro dele se cole à tua pele e fique como ele não ficou.

(Adormeces.)

Muito obrigado, mãe.

quinta-feira, novembro 03, 2005

Ficção (15).

E a luz invade a casa. O soalho, as paredes, os tectos, os vidros das portas, as janelas, os tampos das mesas, os livros nas estantes, as cordas e as teclas do piano, a tua chávena de café ainda a meio.

A luz. Invade a casa.

Ficção (14).

É por isto que te escrevo: porque me tornei inadiável.

E a luz invade a casa.

Ontem, às 17h00.

Sair de casa. Apanhar um táxi. Pagar. Sair. Entrar no edifício. Subir as escadas. Andar mais um pouco. Bater à porta.

(Ninguém.)

Esperar no patamar por alguém que insiste em não chegar. Verificar as horas no relógio adiantado cinco minutos para nunca haver atrasos. Telefonar. Ninguém atende. Esperar mais um pouco. Telefonar novamente. Novamente ninguém. Enviar uma mensagem escrita. Uma hora depois ter resposta: esquecimento, lapsus memoriae, lapsus intellegentiae. Esperar em pé no patamar e sentir nos ombros

(o esquerdo desocupado, o direito com a mala que transportas sempre contigo)

o peso característico da indiferença reservada apenas aos mais indiferentes.

(Ou talvez não.)

Ain't that the truth...

Um homem com uma erecção tem uma memória falível.

Patrocínio: IKEA.