sexta-feira, outubro 31, 2008

Sinal de vida.

Tocam-me à porta uma vez. Estou no banho e não posso abrir. O toque persiste, repetido a ritmos e andamentos diferentes, mas não me preocupo porque sei que é engano - que não é para mim. Mesmo que não estivesse no banho, não daria sinal de vida porque sei que não é para mim.

Ontem, às 16h12mins.

Gulbenkian.

Andar pela rua debaixo de chuva e ter a mão esquerda quente no bolso respectivo. As ruas cheiram a limos; as pessoas pisam os passeios escorregadios com cuidado, algumas correm ao longo do asfalto espelhado. Chove mais. Tenho a água a querer entrar-me para os sapatos, mas piso as poças o mais que posso. Viro à direita e atravesso o jardim onde há gente a cortar ramos, plantas, a apanhar folhas da relva molhada. Vou subindo as lajes quadrangulares sem pressa; passo por baixo de toldos alagados e dos quais a água não foi ainda enxotada. Chego ao CAM atrasado e afogueado. Encontro-te e saímos logo a seguir; lanchamos ali ao lado.

terça-feira, outubro 28, 2008

Pronomes.

A nossa vida de ora em diante tua e minha, preenchida com todas as perguntas que não fazemos um ao outro e a que não damos resposta; com as palavras que enterrámos no vazio; com as trocas estáticas dos nossos silêncios simultâneos.

Agenda (1).

Pessoalmente mais frio.

Entra-me o frio para as mãos e depois não quer sair, sabes? E para os pés. Para as orelhas também. Para o pescoço. Visto uma camisola; um casaco; ponho um cachecol. As noites estão mais frias, e não é apenas por tu não estares; por tu não tornares a estar. As noites estão mais frias e sobreponho peças para me aquecer. Tenho pouco sucesso. Como ao fim de um chá ou dois continuo com mãos e pés apenas tépidos, conformo-me com o facto de o frio ter vindo para ficar; e de me teres deixado, claro. Naquele que se adivinha como o Inverno pessoalmente mais frio dos últimos três anos - e na impossibilidade de um par de mãos aquecidas por outro par maior e mais quente do que elas -, é bom ter as coisas arrumadas e tristes nos seus lugares.

Walking wounded.

É possível ficar quieto a um canto sem dizer nada e deixar que as coisas passem. Mas as coisas não passam. Não se fica quieto; não se fica sem dizer nada.

À procura de um texto autobiográfico (41).

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça


[ Mário Cesariny: Pena Capital. ]

Our separate ways.

Não te vou dizer para ligares. Não te vou dizer para escreveres. Não te vou dizer para vires cá ter. Não te vou pedir para me pedires para te ir buscar. Não te vou dizer que tenho saudades. Não te vou dizer que sinto a tua falta. Não te vou dizer que me custa adormecer sem ti ao meu lado. Não te vou dizer que este fim-de-semana vou ficar sozinho ou quanta falta tens feito aqui por casa. Não te vou dizer o que comi ao jantar. Nem tão pouco vou perguntar o que comeste tu, ou o que viste, ou o que ouviste, ou o que foste dizendo durante o dia. Não te vou dizer que não me esqueço do cheiro da tua pele. Não te vou dizer que penso em ti. Não te vou dizer que me faz falta ver-te. Não te vou dizer que, no fundo, não me apetece comer, ou beber, ou fazer qualquer outra coisa agora que não estás. Não te vou dizer que dói. Não te vou dizer que não me apetece sair de casa. Não te vou dizer que ainda estou acordado. E sobretudo, sim, sobretudo não te vou dizer que te amo. Não to digo para não te aborrecer; para te poupar ao trabalho de o ouvires. Não to digo para que não o possas esquecer.

Greensleeves.

Desistência.

Há um ponto em que se começa a desistir dos outros. A culpa não é tanto dos outros como nossa que, idiotas, depositámos neles expectativas. Dada a irreversibilidade do processo - e a rapidez do curso de quase tudo -, puxamos uma cadeira, sentamo-nos, e assistimos ao espectáculo para o qual, de uma maneira ou de outra, pagámos bilhete.

quinta-feira, outubro 23, 2008

GPS.

Se te perderes na cidade talvez seja possível encontrar-te. Deixa marcas, se puderes; pistas de que passaste por ali. Esquece-te de coisas tuas nas esquinas, aos pés das estátuas, no interior das igrejas nossas conhecidas. Deixa traços teus para que te encontre. Com alguma sorte, é possível que não nos tornemos a cruzar.

The lights go off.

Duas noites, cinco filmes.

Quando dei por mim, tinha visto em duas noites cinco filmes de Wong Kar-wai. Comecei com In the Mood for Love e vi logo a seguir 2046. Preferi o primeiro e continuo a revisitar muitas das cenas do filme; 2046 foi visto quando saiu, há quase quatro anos, e lembro-me de uma história que lhe ficou apensa. Passei para Happy Together, que vi pela primeira vez há pelo menos oito anos; lembrava-me de muito pouco e soube-me bem revisitá-lo. Na noite seguinte, Chungking Express e My Blueberry Nights - este último visto no cinema há pouco tempo e de que, apesar do que se lhe apontou de menos bom, gostei bastante. Além do desempenho de Natalie Portman, aqueles nem quatro minutos de Chan Marshall em cena talvez tenham ajudado a que gostasse mais do filme.

Over again.

...De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só... Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.


[ Konstandinos Kavafis: "O Sol da Tarde." Os Poemas (trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis). ]

Non nobis.

Que me revisites como a um túmulo: quedo, calado, com flores na mão; cabeça humilde, toldada pela luz e pela culpa. Que em cada visita te pese o chumbo no peito e te amarrem ali as trepadeiras. Que ao sentares-te esperando ver-me esperes, eu não chegue - e ali fiques.

terça-feira, outubro 21, 2008

Chungking Express (2).

As coisas que substitui imperceptivelmente por outras, os saltos que dá pela casa, o avião despenhado no aquário, o CD de que se esquece na aparelhagem, as luvas de borracha cor-de-rosa que mantém sempre ou quase, a forma como adormece junto a ele sem querer.

The end.

Artista convidado.

Quando comecei a falar contigo tive de aprender a pôr o coração de parte. Isto parecia-me estranho: pegar nele, no início de cada conversa, e pô-lo guardado num armário ou numa mesa imaginada ao lado do sítio onde estivéssemos. Aos poucos apercebi-me de que falar contigo, e amar-te como consequência, era sobreviver-te. Um coração é um órgão limitado - sabes isso tão bem como eu; temos de o ir preservando, resguardá-lo como a um filho. Quando encontramos alguém como tu - e são poucas as vezes em que se encontra alguém como tu - não há escolha: oferecemo-lo se sabemos que pode ser aceite; se não sabemos ou sabemos que não, fazemos o que faço, percebes? É pegar nele e guardá-lo, pô-lo de parte. Na impossibilidade de te incluir na minha vida, ou de ser por ti incluído na tua, conformo-me com o estatuto de artista convidado - aquele actor que, numa série, aparece esporadicamente na cena já habitual ao espectador; o tio afastado, o primo esquecido, o amigo dos pais ou dos avós, um antigo vizinho. Se isto não é declaração de intenções suficiente, então não sei o que será.

O fim.

São poucos os filmes e os livros que confirmam o seu fim com as palavras "The end", "Fim", "Fin". Poucos. Quase nenhuns, pelo menos com que me tenho deparado. Pela minha parte, acho útil essa informação. Quando leio um livro - um livro de que gosto muito -, não quero que o livro acabe; chego à última página e espero que se escrevam novas para que possa continuar a lê-lo. Como isso não acontece, acabo por perceber que o livro acabou, e é com alguma tristeza que o concluo. Declarar o fim - de um livro, de uma história, de um filme, do que for - é importante; fechar uma porta é importante, necessário. Mas há livros que nos tiram a vontade de ler outros. E filmes. E histórias. Deste lado da porta fechada estou eu - incapaz de cruzar outra página, de me permitir um fotograma que seja, ancorado à história que nós fomos.

Fila C, lugar 4.

Entra em palco a sorrir muito e é impossível não nos sentirmos acarinhados. Como tende a acontecer com quase tudo aquilo de que gosto, não consigo explicar bem o concerto de Aimee Mann. Foi muito bom ouvi-la / vê-la ao vivo pela primeira vez, o alinhamento a conseguir incluir temas do último álbum e de álbuns anteriores - com direito, entre outras, a "Red vines" e "Today's the day". Sem poupar louvores ao público português, o desempenho de Aimee foi de um carisma e de uma energia extraordinários. E como com todas as coisas boas - que viciam, doem um pouco, e fazem mossa -, saímos da sala a querer mais uma música ou duas; mais uns minutos com ela em palco, para que possamos guardar mais ainda no coração e na cabeça que já transbordam.

Chungking Express (1).

De tão só, o homem fala com os objectos que tem espalhados pela casa como com pessoas. Encontrando-os a todos acabados de sair de um relacionamento, aconselha-os primeiro. Mais tarde, ao achá-los mudados, repreende-os: primeiro ao sabonete, depois à toalha, depois ao boneco de peluche, e por último à camisa branca do uniforme dela, deixada para trás como troféu ou escolho. Falar-lhes é falar-se, embora ele não o saiba ou não o consiga admitir. No dia seguinte, de encontro a um céu muito azul - com um avião que passa diagonalmente ao fundo -, o branco da camisa repreendida paira irrequieto na corda da roupa. É preciso avançar.

Slideshow.

Testemunhas.

"Ninguém que não nós saberá alguma vez o que tivemos." Mentira. O céu, a relva cortada, as pedras nas paredes dos prédios por que passámos, os pássaros acima, as pessoas com quem nos cruzámos nas ruas, os telhados das casas, os barcos que nos viram ao longe: todos testemunhas do que tivemos e não tivemos - do que restou e não restou do nosso naufrágio em terra.

terça-feira, outubro 14, 2008

Um fantasma.

Não usa um lençol com recortes circulares onde estão os olhos, não precisa disso. Os grilhões dispensam-se, podem ficar arrumados à espera de melhores dias. A voz grave e com eco não é necessária. E um fantasma, pensando nisso agora, não precisa de aparecer apenas à noite ou em divisões escuras ou quando chove e troveja. Um fantasma aparece e pronto. Sentimo-lo na sala quando estamos de costas para ele. Por nos ser familiar, não gritamos quando o vemos; antes, convidamo-lo a sentar-se e ficar por ali; oferecemos-lhe café e pedimos-lhe que nos conte histórias - que nos faça companhia porque tanto do que então nos resta é espectral. Já cansados, pedimos-lhe que volte no dia seguinte à mesma hora; que nos aqueça os pés, se puder; que tranque a porta, dê comida ao gato, traga um copo de água para a mesa-de-cabeceira; que se deite ao nosso lado como um cônjuge, e nos repita ao ouvido esquerdo palavras antigas, há muito empoeiradas.

Sunday morning.

In the mood for love.

Vizinhos mudam-se em simultâneo. Ao longo do corredor estreito, carregadores levam para os espaços cestos com roupa, móveis envoltos em mantas riscadas. Rapidamente se preenchem as divisões com os pertences, alguns trocados. Ela encosta-se à parede como hera e ali fica. Trocam sorrisos esforçados. Mais tarde poderão encontrar-se: é certo que o farão, evitando sempre replicar os gestos conjugais; marido e mulher, esses, figuras de corpo quase ausente.

O dia é outro, a noite outra. Prisioneiros no quarto, ele dorme, ela também. Esgota-se a coreografia paralela dos seus passos numa cidade que os esquece e torna esquecidos. É preciso mudar; é preciso partir e voltar depois aos sítios de sempre - esperando encontrar nos lugares costumeiros gente, mobília, afectos. Recordam-se às vezes: ele, do negro impoluto dos cabelos dela à medida que se afastava; ela, do quarto dele em que ele agora não está. Na casa onde mora, primeira e última de todas porque a mais feliz, chama o filho e preparam-se para sair. O passado fica no chão, nas paredes, nos cortinados, no pó fino em cima dos móveis - morto na pele.

O mapa do mundo.

Qualquer professor de geografia to dirá. Vê: este é o mapa do mundo, partido em fatias irregulares, no qual não figuras.

Ficção (57).

Era capaz de jurar que o teu cheiro estava na entrada do prédio onde vivo e escada acima. Abro a porta, sinto-o na rua a virar à direita, e penso que estiveste ali mesmo agora. Relativizo: estás em casa, à frente da televisão, provavelmente com a cabeça tombada um pouco para trás na almofada do sofá. Dormes ou quase. A cara que fazes quando tens sono - e que observo sem que notes - vem-me à memória. Talvez tenhas ido sair sozinho ou com amigos. Mais tarde e bêbado, talvez metas a chave à porta do teu antigo prédio; não serve, apercebes-te de que te mudaste. Como não queres voltar ao teu apartamento vazio, telefonas-me e pouco depois tocas-me à porta, pronto para passar o que resta da madrugada e a manhã tombado exausto no meu sofá, na minha sala - na casa que podia ter sido a nossa.

These days.

Em conversa com um amigo, deixo cair a frase "Esse fantasma está cá sempre". Apercebo-me de imediato de que é uma das coisas mais temivelmente pessoais que disse nos últimos tempos.

Keepsake.

terça-feira, outubro 07, 2008

Ficção (56).

Talvez fosse tarde para estar ali, a julgar pela maneira como olhavas para o relógio uma duas e três vezes. Perguntei-te se te estava a aborrecer; respondeste que não, mas foste pouco convincente. A conversa tinha morrido. Passámos a hora seguinte a olhar para quem subia e descia as escadas do sítio onde esperávamos que a hora do filme chegasse. Podia ser que o escuro nos resgatasse; que o pó a mexer-se no foco de luz a tempos constante e intermitente dissesse mais do que as nem vinte palavras que tínhamos trocado. Já sentados, com o filme a pouco mais de meio, olho para o lado - para ti. À minha esquerda, tu choravas cabisbaixo.

No smoking.



Movie night.

Começo com Interiors. O filme termina comigo a senti-lo demasiado perto do osso em certos aspectos. Uma fala fica à espera de ser confirmada da próxima vez que o vir; não tive coragem de voltar atrás para a anotar. Passo para My Life without Me, e há qualquer coisa na casa de Lee - só com livros dentro e esvaziada de móveis porque as pessoas às vezes partem e podem voltar - que me deixa inquieto; assim como no momento em que, debaixo de chuva, ele e Ann correm para o carro para ouvir uma das gravações que a irmã dele lhe envia periodicamente. Foi aqui que ouvi Blossom Dearie pela primeira vez. É tarde e estou cansado: Sideways, In the Mood for Love, The Royal Tenenbaums e Lost in Translation terão de ficar para outras noites. E agora, aberta em definitivo a porta à insónia, vou pôr café a fazer; convidá-la a entrar.

Deste lado.

Lembra-te das coisas que te disse e não te disse, do que fiz e do que arrumei no armário em prateleira alta. Lembra-te também dos gestos que fomos abandonando em mesas de cafés e alhures, como se fossem livros com lombadas comidas pelo sol, cachecóis, uma luva desemparelhada ou um brinco que caiu. Lembra-te dos cigarros que fumámos e não fumámos; do bafejar nas manhãs geladas a caminho da Faculdade; das noites em que nos perdíamos nas ruas do Bairro. Lembra-te de tudo isto e esquece-o em seguida: deste lado, farei o mesmo.

Decisões.

Thursday

I have had my dream—like others—
and it has come to nothing, so that
I remain now carelessly
with feet planted on the ground
and look up at the sky—
feeling my clothes about me,
the weight of my body in my shoes,
the rim of my hat, air passing in and out
at my nose—and decide to dream no more.


[ William Carlos Williams: Sour Grapes. ]

Sistema métrico.

Media dias e noites por ele. Encontrando-o em falta, perdeu-lhes a conta.

quinta-feira, outubro 02, 2008

Intervalo.

Três meses dos quais não há recordação ou registo: o que fiz, as pessoas com quem estive, os filmes que vi, os sítios a que fui, as conversas que tive. A culpa é minha; não escrevi. Proibi-me de o fazer, é essa a única coisa de que realmente me consigo lembrar. Não tendo escrito, esses três meses estão e ficam perdidos - uma mancha estranha no tecido também ele estranho dos meus dias. Não torna a acontecer.

Rascunho.

Vida (8).

Desde que o tinha conhecido, as fotografias que tirava tinham-se tornado mais nítidas, mais coloridas; tinham mais vida dentro.

Most People.

We fell into silence then; he did not ask me any more questions. I was still happy to sit there beside him, but that is only because I have very, very low expectations of most people, and he had now become Most People.

[ Miranda July: "The Shared Patio." No One Belongs Here More Than You. ]

Idiossincrasia (7).

Quando quero escrever a ossada de um texto, costumo ter alguma dificuldade em fazê-lo sentado ao computador e directamente no Word: escrevo mais facilmente de pé - encostado ao piano e usando-o como mesa. Escrevo em folhas A4 brancas, em post-its, em folhas pautadas arrancadas do Moleskine; já cheguei a escrever no verso de fotocópias de partituras e nas partituras propriamente ditas. O lápis que uso tem, por regra e acaso, uma ponta bastante mais romba do que deveria ter. É raro escrever a caneta.

Aquecimento central.