terça-feira, julho 29, 2008

Noites (1).

Leio até de manhã encaixado no sofá, com um copo de café frio ao lado. A madrugada avança, as pálpebras ficam pesadas. Adormeço muitas vezes ali, e acordo com a luz a entrar às riscas pelos estores. Também me acontece adormecer em frente à televisão, durante uma série ou um filme. Falo com amigos - uns longe, outros mais perto. Corro os livros nas estantes e faço planos para o que ler a seguir. Oiço música até tarde. Escrevo, releio, risco, amarroto folhas que depois deito fora. Fico de ouvido quase chegado à janela do quarto a ouvir os barulhos inexistentes da minha rua às cinco da manhã. Penso em ti.

Running in the family.

Instantâneos (4).

Os envelopes são brancos e cor-de-laranja. Letras vermelhas à frente. Estão comidos pela luz nas arestas. Sentimos-lhes o conteúdo através do papel: rectângulos de tamanhos diversos, com os lados aparados em ondas. Dentro dos envelopes estamos nós.

Instantâneos (3).

A casa onde está o armário com os envelopes era diferente. Havia um muro que separava o pavimento da relva, um portão maciço de madeira entrecruzada pintada de verde, estátuas espalhadas pelo jardim, agora resguardadas no interior da casa. E também o interior da casa era diferente: o desgosto do divórcio levou O. a destruir e refazer duas divisões inteiras porque a lembravam demasiado do ex-marido. A biblioteca morreu, dando lugar ao escritório onde está o armário onde estão os envelopes onde estão as fotografias. A casa mudou e eles - nós - com ela.

Instantâneos (2).

Os dois filhos, em duas fotografias tiradas no mesmo lugar. Um deles parece-se comigo: tem a minha boca, o meu queixo, o meu nariz, o meu corpo. O outro é magro, tem bigode, e olha através de quem dispara a máquina. Trinta anos depois, o que é parecido comigo morre num acidente de automóvel na Marginal; o que não se parece comigo tem um esgotamento. Desse tempo, num outro envelope, há uma fotografia tirada em Agosto na qual tem vestido um casaco pesado. Diz-me que não conseguia parar de tremer de frio. Não olha para ou através de quem o fotografa - não tem ainda força para tornar a fazê-lo.

Instantâneos (1).

M. está sentada na varanda de uma casa que se chamava Shalimar e que entretanto se vendeu. A luz no espaço franze-lhe a cara ao redor dos olhos. Não sorri.

Ektachrome e companhia.



À procura de um texto autobiográfico (40).

What kind of beast would turn its life into words?
What atonement is this all about?
—and yet, writing words like these, I'm also living.


[ Adrienne Rich: "Twenty-One Love Poems." The Dream of a Common Language. ]

Poder de síntese.

Há três versos de uma música dos The Magnetic Fields chamada "100,000 Fireflies" que dizem

You won't be happy with me,
But give me one more chance
You won't be happy anyway


Um poder de síntese destes não se subestima.

quarta-feira, julho 23, 2008

Preso.

Estou preso naquela sala - no último lugar daquela quarta fila em que os via e ouvia tão bem. Completamente preso e sem possibilidade de dar a volta a isto. Porque a noite me soube a pouco e ainda revisito o "Take ecstasy with me" cantado pela Claudia Gonson. Quando no final o violoncelista Sam Davol, com um sorriso nos lábios, tirou uma fotografia ao público, não pude deixar de lhe sorrir de volta. Isto foi em São Francisco. Sobre o vídeo, pode ler-se "Many concert attendees were seen weeping with joy after this performance." Compreendo perfeitamente.

Entra.

Lust, caution.

Os lábios dela manchados de café. A chávena muito branca manchada do vermelho dos lábios dela.

Partes.

Manípulos, ombreiras, cores, canecas, chãos, paredes, reflexos, sofás, livros, objectos diversos, sítios, letreiros, coisas outras. As pessoas não estão. Encontramos partes de pessoas, é certo - pernas, braços, mãos, pés, corpos, raramente uma cara -, mas quase nunca pessoas inteiras. E tantas vezes também as coisas partidas em partes: uma porta que se desmonta pela imagem, a ilharga de um edifício que se galga com os olhos, a relva antiga desbotada pela luz, a perna de uma mesa, uma garrafa de cerveja num parapeito. Como tudo me foge, parto tudo em partes.

Kübler-Ross.

Atirar a bóia ao mar, perder o mundo. Fingir que não te fujo e fugir-te em seguida. Pintar os olhos, as unhas, afiar a língua. Fazer gorjeios ao telefone e dizer-te que não sou tua. Deitar fora a mobília, os retratos em que estamos. Dizer à tua mãe que és impotente. Chocar vizinhos, falar alto, ser escabrosa. Deixar-me ser vista à noite em cores garridas, com companhias para ti impróprias. Arrancar-te os dedos à dentada. Mandar toalhas da janela, lençóis, almofadas. Arranhar as paredes e molhar o colchão nu com a minha cara. Dizer adeus ao teu cheiro metido nos poros dos cortinados. Viver sem ti daqui para a frente, com os pés frios à noite e um despertador como marido.

RSVP.

Que faço quando passar por ti na rua - falo-te, não te falo? Desvio a cara ou não a desvio? Mudo de passeio? Escondo-me na entrada de um prédio ou fujo rua acima na esperança de que não me tenhas visto, como fizemos daquela vez? Viro-me e estaco em frente a uma montra enquanto desfilas por trás de mim? Ponho óculos escuros, bigode postiço, falo com outra voz? Como chegámos a isto? Pior: que farás tu?

Azuis.

Má pontaria.

Um dos álbuns de The Blow que estive a ouvir ontem chama-se Poor Aim: Love Songs. Bom título.

quarta-feira, julho 16, 2008

Objectiva.

Não me confundas com qualquer coisa transviada ou indecisa porque não o sou. Se os meus contornos na noite te parecem turvos, dá uma volta à objectiva e ver-me-ás claro.

The lights go on.



Fora de plano.

Na fotografia não se vê que estás tu e que sorris, não se vê que estou eu e sorrio atrás de ti enquanto te tiro a fotografia. Vê-se que é de noite, mas pouco mais: onde foi tirada é irrelevante; a data esquece-se facilmente. Mas sabe-se que é de noite; que nos metemos no teu carro e por cima de nós aviões. Que saímos e atravessámos estradas e nos deixámos parados no meio das avenidas, máquinas na mão ou ao ombro. Que estávamos ali os dois e de repente era tarde e não queríamos voltar a casa. De uma noite em que estivemos felizes e vivos restam fotografias como testemunho - coisas desfocadas, halos, rastos de luz branca deixados por faróis de carros à entrada de um túnel. E nós: nós nas fotografias, nítidos, lado a lado, e tantas vezes fora de plano.

Risco.

No Weeds, há um momento no final de um episódio da terceira temporada ("Risk") em que Shane, depois de ter dito algo que torna todo aquele caos ainda mais caótico, olha directamente para a câmara, para o pai imaginado, regressado dos mortos. À sua frente apenas um lugar vazio à mesa. Ouve-se o "Scenic world", o ecrã fica preto e começa a passar o genérico. Nos últimos tempos dou por mim a revisitar demasiadas vezes esta cena.

Cronómetro.

Os nove minutos e quarenta e dois segundos de "No conclusion", dos Of Montreal, são perigosamente biográficos, e aqueles três últimos versos permanecem como aviso ou lamento. Biográficos também, e em demasia, os dois versos iniciados aos cinquenta e dois segundos e terminados aos cinquenta e nove.

Comentário desnecessário (70).

An affair to remember.

Ao enviar-lhe a mensagem pensou que talvez não chegasse; que, por sorte sua, ela tivesse mudado de número e com isso de casa, cidade, país. Tinham passado quarenta anos. Não sabia se continuava viva. Como era a voz dela, será que ainda se lembrava? Mais valia ligar-lhe. Escreveu num papel o que devia dizer, não se fosse atrapalhar ou caso a chamada fosse parar ao atendedor. Ligou. Quando do outro lado ela disse

- Estou

os olhos dele encheram-se, a garganta fechou-se num soluço profundo, e teve de desligar. Entre eles nada que pudesse voltar à vida, a ser dito; um silêncio aprendido a custo, intransponível e sem retorno.

terça-feira, julho 08, 2008

O Atlético.

Levas tu os cafés. Eu fico atrás a fotografar degraus, azulejos, gente, chão, portas. Ouve-se Nouvelle Vague lá em baixo, na praça, e o chiar das andorinhas que passam rasantes pouco acima de nós. Tenho a chávena pousada no parapeito do sítio onde estamos sentados e um sorriso grande na cara. Aos poucos, sem que se perceba, as sombras mudam, a luz vai saindo de cena, e é hora de irmos.

Entardecer.

Transparência.

Ao quadragésimo oitavo diapositivo em que apareces começo a chorar. Não consigo parar e fico assim até que adormeço a um canto do sofá. Pela noite dentro e até de manhã, a tua cara na parede da minha sala - no espaço em branco entre televisão e mesa; a tua cara quando acordo e que desaparece apenas quando a película se derrete ou a luz do projector se funde por fim.

Reunião.

Praia bretã

Reunido está o que vimos,
para despedida de ti e de mim:
o mar, que nos lançava noites para terra,
a areia, que as atravessou connosco,
a urze vermelho-ferrugem além
onde o mundo nos aconteceu.


[ Paul Celan: Sete Rosas Mais Tarde. ]

Exílio.

Fiz até ti a viagem às avessas e, uma vez chegado, regressei. Ninguém me esperava. No táxi até casa, os bancos enxotavam-me. A mala do carro abriu-se a querer cuspir a mala que trazia comigo. Quando entrei, ninguém me esperava: nem tu, nem o cão, nem a mobília. No espaço restavam apenas as minhas coisas nos sítios onde as tinha deixado. Das tuas nem sinal. Fechei a porta, pousei a mala no corredor, fui à cozinha beber água e deixei-me estar ali, encostado à bancada, no vazio imposto da nossa casa agora minha.

Verão (1).

Cartas.

Os mortos persistem nas contas de telefone, electricidade, gás; nos retratos em família comidos pela luz, preservados em molduras poeirentas. O nome dos mortos e o seu corpo persistem, sem que os varramos por completo. Às vezes chega uma carta ao sítio onde moramos: pela janela transparente do envelope, um nome velho, que não reconhecemos; o anterior habitante da casa a quem, falecido, ainda escrevem. Deposita-se a carta no topo da caixa de correio, na esperança de que o carteiro a leve no dia seguinte. Ou então declaramos morto o destinatário, mas as cartas voltam porque estar morto não é desculpa para não escrever. Anos mais tarde - muitos, espera-se -, os nossos envelopes ficarão por abrir, as contas por pagar, as cartas amontoadas no interior da caixa de correio vermelha na entrada do prédio. Mudámo-nos ou morremos. A diferença é pouca.

MS-DOS.

Havia palavras que, sozinhas ou combinadas, lhe soavam sempre a "bad command or file name".

Parecenças.

Vinte e seis anos mais tarde, descubro por acaso que o bolo de que mais gosto é o bolo de que ele mais gostava.

Comentário desnecessário (69).

Fehlleistung.

Numa reunião de avaliação em que os interlocutores portugueses falavam em inglês por questões inerentes ao procedimento, o coordenador das várias linhas de investigação diz, a dado ponto, "We pretend to do these things as we have pretended to do others in the past." O uso do verbo to pretend ("fingir") em vez de to intend ("pretender" / "tencionar") foi um deslize. Mas não vale a pena falar de Freud, pois não?

terça-feira, julho 01, 2008

Glória.

Ter passado a centímetros da Claudia Gonson, saía ela das doutorais, depois de ter estado a assistir a parte da actuação de Darren Hanlon.

Via.

Que sais-je?

Vai-se escrevendo sobre aquilo que se sabe. Quando não se sabe - ou se deixa de saber -, os dias amolecem e com eles pálpebras, carne, músculos, mãos. Lê-se muito ou lê-se pouco. Escreve-se. Pega-se na máquina e fotografa-se o que se conhece e não se conhece. Sai-se de casa e na rua nada: não se sabe o que fazer, o que aconteceu, como se chegou até aqui, porque a dêixis é uma coisa lixada e todos os sítios em que estamos são aqui, mas nenhum o é. Quando não se sabe, diz-se

- Até já

ou

- Vou ali, já venho

e aprende-se japonês, faz-se o pino, salta-se ao pé-coxinho, lê-se um livro, tira-se um curso; faz-se por saber mais. Até lá, o silêncio que invade as coisas como tinta, nódoa, óleo; que cobre de pó os móveis e se entranha. E depois aos poucos a voz em crescendo, recarregada. Voltamos a falar e a língua é um animal novo, indomado. Novo jogo, novas regras. E novo jogador.

O caminho até aqui.

Não sei como fiz tão depressa o caminho até aqui. Agora que estou à tua porta com uma mala ao lado e as palavras certas à flor dos lábios, só consigo pensar em dar atrás os passos necessários para que não me tornes a ver; os suficientes para nos pôr um fim.

Voltar.

À procura de um texto autobiográfico (39).

E então nós cobardes
que amávamos a noite
rumorosa, as casas,
os caminhos do rio,
as luzes vermelhas e sujas
daqueles lugares, a dor
mansa e calada —
arrancámos as mãos
da cadeia viva
e calámo-nos, mas o coração
sobressaltou-se de sangue,
e não houve mais doçura,
não houve mais o abandono
ao caminho do rio —
agora livres, soubemos
que estávamos sozinhos e vivos.


[ Cesare Pavese: Virá a Morte e Terá os Teus Olhos. ]

Dear John.

Quando finalmente se decidiu, fez a mala, a cama, arrumou a casa pela última vez. Deixou-lhe um bilhete

("Não me procures. R.")

na bancada da cozinha e no congelador comida suficiente para as três semanas seguintes. Uma vez esvaziadas as caixas de plástico com tampas coloridas, estaria longe; teria deixado de pertencer à vida dele, de lhe pertencer.

Clicar.

Mas há mesmo quem queira usar o Babel Fish quando o próprio traduz "click the flag" por "estale a bandeira"?

Leaving now.